I
“Vai nessa, meu broder, também vou aproveitar o seu sonho para
fazer uma fezinha”.
Puxou o lençol e, antes de dobrá-lo em quatro,
utilizou-o para sacudir a poeira de cima da cama. Enquanto fazia isso, pensava
nos ofícios do corpo, nos rituais do deitar-se para dormir para que o sono fosse
o mais tranquilo e reparador possível. Depois se aproximou da janela fixando o
olhar nas sombras das nuvens, sentindo o sangue correr pelas veias e,
finalmente, foi deitar-se, convencido de que dormiria como uma pedra, em
repouso absoluto.
Não foi o que aconteceu. Ou
foi?
E nada de o sono chegar. Parecia que, sem
qualquer aviso, ele se hospedara em outros aposentos. Então, Carlos rolou
diversas vezes pela cama contando carneirinhos nas nuvens. Estes iam e vinham
rapidamente, se atropelando e a tudo que iam encontrando pela frente, enquanto,
outras vezes, cobriam o corpo dele com as suas lãs como se fossem tapetes.
Não demorou muito e se acomodou em um deles e
voou em direção à terra. Era um voo poderoso, só quebrado por mergulhos
cortantes e lúcidas e famintas quedas por abismos.
Vinha assim descendo a
ladeira num trem sem roda, desgovernado, deixando-o atordoado sem saber se
chegaria, com vida, a qualquer lugar que ele fosse.
Parecia que estava sem freios aquele trem da noite,
já beirando a madrugada. Na sua corrida louca, encontrou na primeira estação
Seo Teteu, agora bem mais velho, mas ainda atrás de Maria. Aquela mesma Maria
que o enchia de esperança quando entrava pelo meio da tarde na sua casa,
aproveitando-se da ausência de sua mulher, dona Velha, que cuidava da outra
casa em Maria Guarda, aquela ilhota quase desconhecida da Baía de Todos os
Santos, deixando-o quase sempre sozinho por achá-lo já imprestável para tantas
outras coisas.
Todo mundo sabia o que Maria fazia quase todas
as tardes na casa do velho porque ela mesma contava com riqueza de detalhes o
quanto o deixava feliz, ao fazê-lo sentir um antigo calor entre as pernas.
Fazia-o com desenvoltura e experiência de uma profissional. Parecia que tinha
um manual de prazer nas mãos. Ia-lhe mostrando parcimoniosamente o corpo e ia
apalpando o dele com maestria e leveza para que ele sentisse o calor das suas
mãos em suas partes íntimas. Era o que bastava fazer-lhe para sair, dali, tendo
nas mãos o rico dinheirinho da feira da semana, deixando o velho com a alma
lavada e o corpo satisfeito. Todos na rua guardavam o segredo da felicidade do
velho Teteu sem que a sua mulher – dona Velha –, desconfiasse do que acontecia
enquanto ela estava cuidando da outra casa.
Apesar do tácito acordo, quando alguém saía dos
seus cuidados e dizia “que sem-vergonhice, Maria, bem esperta, está se
aproveitando do velho direitinho, quando dona Velha voltar, vou contar-lhe
tudo”, vinha logo outro e dizia “deixa a menina em paz, o que você tem com
isso, são duas almas caridosas, estão numa troca de favores e, com esse
dinheirinho, ela está garantindo o pão e a escola dos seus filhos”. E a
conversa morria ali. Não se falava mais nisso por algum tempo.
II
Agora os profetas estão na
igreja orando enquanto o trem segue o seu caminho sem fim, sobre os trilhos,
mas sem as rodas, embasbacando Carlos, com aquele voo vertiginoso, sem saber se
sonha enquanto dorme ou se delira com a insônia, mas sentia uma estação
próxima, se fosse possível desceria porque estava assustado com a correria
desenfreada.
Um murmúrio aéreo já planava naquele mar íntimo
quando a festa na casa de Dorminhoco terminou e a madrugada corria solta pela
Rua da Jussara. Carlos ainda estava grudado em Cotoco, uma das netas de dona
Velha e Seo Teteu, do outro lado da rua, quase em frente à sua casa,
amassando-a como podia. Quanto mais ela fingia que tentava desvencilhar-se,
dizendo-lhe que era tarde, afastando a sua mão boba, daqui e dali, mas ele a
prendia entre as suas pernas e braços. Estavam nesse jogo, quando a luz da sala
da sua casa, de repente, se acendeu. A porta se abriu e um vulto esgueirou-se
porta fora.
Cotoco prendeu a respiração e tentou disfarçar
como se não tivesse acontecido nada. Mas Carlos não. Achou que seria a hora de
se aproveitar para tirar um sarro da situação. Então, sussurrou no seu ouvido
“você viu quem saiu da casa de sua tia? e a festa lá estava bem melhor do que
essa aqui”. Provocante, Carlos acrescentou: “Acho que Antônio é amante de sua
tia. Acho não, tenho certeza disso. Aposto que não é primeira vez que vocês
saem para passear ou vão a uma festa, como a de hoje, e eles aproveitam para
ficarem no bem-bom”. E quis levantar a sua saia.
Carlos errou na dose porque ela amuou e não
deixou mais que a sua mão se espraiasse pelo seu corpo, quis entrar logo em
casa para que a sua tia soubesse que ela viu tudo. Também Carlos ficou sem
saber se Cotoco encontrou sua tia na cama fingindo que dormia ou se a encontrou
na cozinha, fagueira, tomando um café com o corpo ainda em brasa porque Cotoco
pôs fim ao namoro, evitando encontrá-lo novamente.
Pela manhã, quando levantou da cama, sua mãe
perguntou-lhe porque não tinha chegado com a calça engomada. Ele respondeu que
Antonio se interpôs no seu caminho e riu. E sua mãe fingiu que não entendeu
nada, pois ela já sabia de tudo. Todos na rua sabiam. Quando a fome dos dois
apertava, Antonio entrava pela janela do quarto da tia sem fazer barulho e, sem
ruídos, se entregavam ao prazer da carne com as sobrinhas dormindo ao lado.
Na rua, já corria a boca pequena que ele não
fora o primeiro, que aquela janela sempre se abrira de madrugada. O irmão de
Carlos fora um dos que pulara, embora ele jure de pés juntos que nunca
atravessou os umbrais daquela janela.
Quando a gravidez já não podia mais ser
ocultada, Antônio já tinha mudado de endereço, fora para bem longe, já não se
sabia o seu paradeiro havia muito tempo. O malandro a deixara com uma filha.
Por outro lado, ela nunca mais abriria a janela de madrugada. O calor que a
solteirona, como ela era conhecida, sentia em outros tempos parecia ter
amainado com o nascimento da filha.
III
Mas todos sabem que a sombra
é inevitável e começava um suor noturno como soturno era o trem resfolegando em
plena madrugada. A próxima estação era logo ali, Carlos já pegava a sua sacola. O
coração do trem estava histérico. No vagão restava apenas ele, que já se
preparava para levantar quando entrou uma dama, formosa, sedutoramente vestida,
bem parecia uma atriz do cinema americano. Ela vinha atravessando os vagões e
se instala no de Carlos; depois de um desfile meneando o seu corpo e os
cabelos, Carlos delira achando que aquele minuto já era uma eternidade.
Como se não bastasse a música que vinha do
corpo da dama, outra explode dentro do vagão. E ela começa uma dança,
provocante, e dele se aproxima com requebros da cintura e meneios do corpo, deixando-o muito excitado; passa-lhe a mão no rosto, depois se enrosca no pole dance
improvisado dentro do trem, roçando nele o seu clitóris. Sobe, desce e se
contorce seguidas vezes. E geme. Aparecia na pele, no rosto, no corpo os laivos
do gozo.
Então, Carlos se lembra das confissões de
adolescente de Lúcia G. que quase morreu atropelada roçando o dela no selim da
bicicleta. Ela fazia isso todos os dias, contou-lhe depois, já adulta, mas,
naquela manhã, parece que descobrira a posição exata para orgasmos sucessivos e
só os interrompeu quando se estatelou no chão com a buzina de um carro nos seus
ouvidos, os pneus cantando no chão de terra batida e os gritos do motorista, um
senhor, perguntando-lhe se queria morrer.
Refez-se do susto, apanhou a bicicleta, olhando
fixamente para as escoriações da perna e correu para casa. Mas voltou ao prazer
do selim no dia seguinte, agora numa rua mais recolhida, como lhe contou nas
muitas sessões de intimidade, já adultos, que tiveram em tardes mornas na casa
de praia da sua viuvez.
Carlos deixa a memória divagar, mas não
perde os movimentos da artista, que está cada vez mais próxima dele, puxando-o
para si e arrastando-o para o piso do vagão. Agora eles resfolegam como o trem
e se embaraçam nas próprias pernas e os sacolejos do trem ajudam no vaivém dos
corpos. E ele lhe diz no ouvido “Demi” e ela diz “não, toda, nada de metade,
toda, toda, meu gostoso”. E ele, Demi, non plus, e ela, “não, nada de metade,
toda, meu menino, não para, não para.”
Acorda com movimentos de vaivém na cama, vira
para o outro lado e dorme. Pela manhã, não pode deixar de lembrar-se de sua mãe
quando descobre o tamanho da mancha na cueca.
Saiu sem tomar café e foi direto para a sala de
Jorge, mestre no jogo do bicho, contando-lhe em pormenores os sonhos. Ele ouve em silêncio e, depois de um tempo, faz a interpretação, atribuindo-lhe os
animais e passando-lhe primeiro as três dezenas e, em seguida, os milhares.
José Carlos Sant Anna