Para todo o sempre, é o que Marina diz para si mesma com o rosto
encostado na vidraça da janela, enquanto a chuva se desembesta pela encosta do
outro lado da rua.
Há três dias que a chuva não dá trégua na cidade. Ilhada,
como se encontra ali, agora, por conta da chuva, aproveita para se perguntar se
ele a procurasse o que diria depois de tanto tempo esperando. Olhos nos olhos,
a música de Chico não sai da sua cabeça quando pensa nessas bobagens dessa
estrada poeirenta, ainda que literalmente a chuva não cesse de cair,
entediando-a e convulsionando a cidade. Parece que o velho Pedro, muito ocupado
com as coisas lá do céu, só agora ficou sabendo das suas tristezas e chora ininterruptamente há
três dias, como se estivesse arrependido pela falta de solidariedade. E
a Marina não falta vontade para dizer-lhe, do jeito que lhe for possível, que
não há nada de novo para contar-lhe, que é tão pouca a sua alegria, mas vai
vivendo sem perder um pôr-do-sol no porto da Barra, o velho porto da Barra,
novinho em folha, depois da repaginada feita pelo pintor de rodapé, e diz ainda
para si mesmo e, como se também o dissesse ao santo, que se a memória dói, é
porque há lembranças, as cicatrizes ainda estão à flor da pele, mas só se fica
sozinha nessa vida quando se quer. Pedro não esconde um sorriso. Ainda que não
devesse, ela não esconde de ninguém que ainda tem a boca amarga, apesar dos
anos que estão separados, porque, volta e meia, ele emerge nos seus sonhos com a
sua boina e uma mala atulhada de roupas numa mão e, na outra, um cigarro que
ele sai pitando pela porta entreaberta, do mesmo jeito que entrou. Ela não se
conforma que tenha que conviver com esse fantasma, ouvindo os seus passos pelo
corredor assoalhado da casa. Esconjura a chuva, mas, em passos lentos, se põe na
rua trajando apenas um sobretudo sobre a roupa que veste, levando na mão uma Vuitton,
único luxo que se permite, e vai andando pela tarde dispersando os hálitos da
alma e, ao chegar ao primeiro cruzamento, aguarda do semáforo a luz verde para
os pedestres; é a senha que precisava para tocar uma nova vida. Então, abre a
bolsa e retira a sombrinha que estivera fechada durante a sua caminhada até o
semáforo, e canta, e dança, e canta, e dança, sob os olhares atônitos dos
passantes e motoristas, o clássico que foi imortalizado por Gene Kelly.
(José Carlos Sant Anna)