– OI, MULHER, POR ONDE você andava?
Estava sentindo a sua falta, sabia? Você está tão bonita!...
Lua recuou ligeiramente quando aquela senhora lhe dirigiu a
palavra com um sorriso que ia de um canto ao outro da boca, dizendo-lhe
palavras amáveis, carinhosas. Em seguida, ela recobrou a fidalguia e o
domínio da situação e lhe respondeu também com um largo sorriso, que se
espalhou por todo seu rosto.
A verdade é que se não ela reagisse dessa maneira não seria a
Lua, que todos nós conhecemos. Assim, ela retribuiu a candura das palavras, sim
senhor, a candura das palavras da sua interlocutora:
– Estou por aí, mulher, você é que anda sumida. Volta e meia,
eu passo pela tua praça. Sempre vejo você por lá, distraída, tricotando a vida
e as suas roupas...
Ainda enigmáticas, entreolharam-se por alguns instantes e cada
uma seguiu para onde a vida as levava naquele instante.
Lua iria comprar umas frutas no mercadinho mais próximo. E, pelo
jeito, D. Maria estava indo para o seu território, munida das suas inseparáveis
sacolas, pois ali também estava o seu manual de sobrevivência. Nelas carregava
uns paninhos de crochê que ela saía vendendo aos transeuntes pelas redondezas
antes que a esquizofrenia, de súbito, pela falta dos remédios, a atacasse,
deixando-a aparentemente como se não tivesse o juízo perfeito.
Portanto, eu dizia que Lua estava indo às compras, para a
sobrevivência da semana, pois morava sozinha. Desde que perdeu os pais, mora
sozinha num amplo apartamento, sob as bênçãos da praça de D. Maria.
Pois é isso mesmo que acabaram de me ouvir dizer. As duas são
vizinhas, separadas apenas por uma rua, entre o prédio em que Lua mora e a
praça, arborizada, fresquinha, que amanhece com as secretárias do lar e, por
vezes, as próprias madames, com os seus cães, cumprindo o ritual das matinais
necessidades deles.
Nesta hora, é bom que todos saibam, D. Maria ainda não ocupou o
seu território. Ela mora na Praça, mas não dorme na Praça. Ela tem uma família
também, é o que todos supõem ou imaginam.
E, além disso, porque são vizinhas é natural que se conheçam, que
nos cumprimentos que trocam entre si não faltem calor humano, intimidade e
bonomia, inata aos vizinhos que se acolhem e se respeitam. E se amam, por que
não?
Por certo, Lua estranhou num primeiro momento o modo tão
amigável, tão íntimo, tão familiar do cumprimento de D. Maria. E tanto
estranhou que se apressou a contar para o grupo família do WhatsApp, como algo
incomum.
– Ei, gente, vocês não sabem o que me aconteceu agora?
Escreveu esta mensagem e aguardou a curiosidade de sua turma,
pois, como os conhecia, e bem, sabia que viria uma pá de perguntas querendo
saber o que houve. E imaginava o que cada um diria da situação inopinada para
ela. Claro
que não era assim que D. Maria encarava a situação. Inopinada, ora vejam só, é
cada coisa que se ouve. Para ela, não havia nada de extraordinário. Anormais
são os outros que não passam o dia inteiro recolhida numa praça, olhando o
vazio ou contando estrelas à luz do sol. Anormais são os que se banham todos os
dias.
Não seria isto o que pensa D. Maria?
– Oi, tia, conte logo... (uma das sobrinhas).
– Lua, não me diga que você encontrou o Brad Pitt boiando e
ele te chamou para jantar, foi, sortuda? Conte logo... (outra sobrinha, de
língua mais afiada, mais descontraída).
– Diga, minha irmã, não temos poderes divinatórios, conte
logo, a mulher das “histórias” para a família é você... (uma das irmãs, cheia
de verve, de ironia).
– Vai, minha irmã, conte logo, a gente não pode ficar a tarde
inteira esperando por essa notícia... (a outra irmã, fingindo formalidade).
E ela contou o modo amistoso com que D. Maria a cumprimentou
revelando o tom de intimidade que ela imprimiu às suas palavras, como se ambas,
lídimas vizinhas de um bairro chique da zona sul da cidade, tivessem os mesmos
anseios, as mesmas preocupações e até mesmo a perspectiva de amores
semelhantes.
Retomaram o diálogo no WhatsApp com um naipe de
gracinhas, pipocando os risos de um lado e do outro, enquanto D. Maria já
ocupava o seu lugar na praça, discursando como em geral ela ficava na praça.
Quando tal acontecia, dizia-se que ela estava
"atacada".
Ela nunca saberia que, longe da ali, era objeto de tantas
especulações e gracejos. Todos bem humorados, é verdade, pois não se pode
esconder a boa formação da galera, ainda assim zombeteiros e discriminatórios, por
que não dizer?
Ainda que soubesse que a espontaneidade de minutos antes
estava sendo motivo de tanta graça entre eles, ela não compreenderia as
razões. Por certo, manifestaria a mesma
estranheza de quando é surpreendida por um carro à sua frente, assustando-a.
Quando tal acontece, ela reage fulminando com o olhar o motorista que a tirou
das suas elucubrações.
Quantas vezes eu ouvi seus impropérios ao entrar na garagem do
prédio onde moro, quando ela queria passar pelo passeio em frente ao portão?
(José
Carlos Sant Anna)