FAZ DEZ DIAS QUE NÃO passo na barbearia. Com o
jeitinho característico do brasileiro sinalizei ao barbeiro, ao passar pela porta do estabelecimento, que ando muito ocupado, dando-lhe a entender que as festas do final de ano me
desviariam do caminho da cadeira giratória do salão de beleza. Aliás, devo
confessar que ir à barbearia é um lazer do qual não abro mão, se enraizou na minha vida
de adulto. Eu adoro. Nessa época do ano, no entanto, o que não faltam são os almoços ou jantares de
confraternização para todos os gostos. Haja festa. Logo, me afastei, para a alegria de alguns e tristeza de outros, porém contra a minha vontade, do santuário do cabelo.
Assim, ao meu
sinal, o barbeiro procurou dissimular certa contrariedade com a minha ausência
e fez um gesto vago anuindo com um sorriso amarelo. Afinal, o fim de ano é um
momento de generosidade por parte de clientes e de amigos, portanto, ele
esperava que não fosse diferente comigo. O que é certo é que achava o tempo
inteiro que ele engordaria a sua caixinha de natal com os mais assíduos frequentadores, logo com a
minha contribuição. Eram favas contadas para ele. Talvez esperasse uma garrafa
de vinho ou outro mimo, quem sabe?
A
verdade é que eu nunca levo tanto tempo sem bater o ponto, ainda que eu não
precise aparar as pontas dos parcos cabelos que ainda mantenho, por algum
milagre, na cabeça, ou seja, a minha ida àquele salão de beleza se faz com uma
regularidade que bem poderia ser chamada de britânica. Como há sempre um porém
na vida de toda gente, e como os há, todos nós o sabemos, eu não consigo
evitar...
Assim,
essa regularidade não agrada ao meu eleitorado em casa. São três mulheres e uma
sentença. Ainda que a "dona da minha cabeça" (por onde você anda Geraldo Azevedo?) diga-me a toda hora que
não sabe por que eu gosto tanto, mas tanto, de cortar o cabelo, "de boa",
desconheço suas aporrinhações, e sigo em frente. Quando ela menos espera,
digo-lhe à queima roupa:
– Vou ali à barbearia aparar o cabelo.
E ouço
dela na lata:
– Já vai jogar dinheiro fora, não é, seu
abestalhado?
Finjo
que não ouço e saio indiferente aos outros impropérios proferidos com a máxima
ironia, mas que se erguem sem destruir as "coisas belas" (Caetano a culpa é sua e de Sampa) que nos
mantém unidos.
Por que
reagir? Tudo vale a pena, com ou sem Pessoa, a repetir já sem voz este pedaço
de verso gasto pelo uso indiscriminado. Às vezes, diante de tais
constrangimentos, vergo sob a ação do vento de Santa Bárbara, mas não demora, e
a haste volta a si, recompondo-se e, em seguida, recupera sua elasticidade, sua envergadura.
Jamais
ela compreenderia as minhas razões para continuar seguindo em frente. O que ela
não sabe, "nem nunca procurou saber" (alô, alô, Roberto Carlos, ainda censurando as biografias não autorizadas?) é que o que menos a mim
interessa na barbearia são os cabelos. Sou indiferente ao tamanho dele ou às
suas pontas. E lá vou eu radiante.
Chego
de mansinho, com bonomia e o corpo ereto, cumprimentando a todos, e vasculho uma revista na mesa
de centro e sento-me escolhendo uma posição que não somente eu veja a todos,
clientes e barbeiros, mas, sobretudo, possa escutá-los, sem perder-lhes uma
palavra. O que me apraz na barbearia são as histórias. As muitas histórias que
ali são ouvidas. E não há cerimônia para contá-las. É um espaço masculino, sem
censura.
Já ouvi
mais de uma vez o meu barbeiro perguntar-me com sorriso maroto:
– Você não tem uma história para contar, não, doutor?
Respondo-lhe
com um sorriso enigmático, deixando-o na expectativa de que, em algum momento,
vou revelar algum segredo, vou contar-lhe alguma história. E depois de uma
pausa, serena, digo-lhe que prefiro ouvi-las, como o velho Guimarães, com a
reserva dos gerais, o fazia. Arregala-me os olhos perguntando-me através deles
quem é esse tal de Guimarães, e acrescenta de viva voz:
- Não
me lembro dele. Vinha sempre com o senhor cortar o cabelo também, não é, doutor?
Desvio
o olhar para que ele não se distraia com essa conversa abstrata e não comece a
alimentar a sua imaginação. Então, volto a fingir que leio uma das revistas à
disposição da clientela e fico torcendo para que o barbeiro se demore ou
apareça uma pessoa mais velha para que eu possa ceder-lhe o meu lugar,
respeitando a prioridade.
Ah!
Quase me esquecia de dizer que o Hatoun também gosta de ouvir histórias na
barbearia, no centro velho de São Paulo, ou por aí afora, está sempre de
ouvidos bem abertos para não perder os detalhes.
Como
não sei mentir, confesso que vou seguindo o belo exemplo dele e do velho
Guimarães, entre outros.
(José
Carlos Sant Anna)