Embora os lençóis estivessem gastos, de tão lavados, quando acabou o queijo e o vinho, ele se levantou do sofá-cama, apanhou uma muda de roupa e disse-lhe que só voltaria na quinta-feira seguinte. Fê-lo como um pássaro triste, de cabeça baixa, antes de fechar a porta do elevador, olhando-a na simplicidade
do silêncio dos seus olhos e, na certeza de que ela não procuraria o analista
para falar-lhe do personagem que ele estava encarnando naquele exato momento ou para tão somente dizer-lhe que não queria perdê-lo, ainda que já tivesse
perdido a chave-mestra ao perceber a tensão dos seus maxilares, parecendo entendê-los melhor agora sem a goma de mascar de uso constante, e o ruído
dos primeiros bares na luz crua da imensa solidão que os constrangia no exíguo espaço que separava uma porta da outra em tudo aquilo que ainda poderia ter sido.
Ela
retribui o olhar na absurda fome que ainda a consome depois da cena. E, enquanto disseca as
curtas palavras que ele lhe diz, faz um gesto amplo e depois repousa a palma da
mão na carne frágil do seu colo. Escorre um ruído quente, febril, pelo corredor.
Talvez um termômetro mostrasse os nervos da mulher nua, o sono líquido boiando entre
a carne e a dor da separação momentânea, como ela supõe.
Momentânea? Há de se saber depois se o luar ainda estiver os ouvindo à beira-rio na memória afetiva de ambos. Ele repete para si mesmo como uma lembrança inesquecível, por outras razões, a palavra momentânea, enquanto o elevador desce levando apenas um corpo apunhalado, porém sem manchas visíveis de sangue. O ar seco alivia o estranho
sentimento quando ele diz para aquele claustro que se arrasta entre as quatro paredes em que se move o elevador:
– Você
está me vendo? Eu estou aqui, bem aqui. A barba por fazer e, mesmo assim, mantenho essa pose. Sei que sou um escroto, e daí?
O espelho do elevador devolve sem máculas o duplo de olhar carrancudo. E, enquanto a fumaça sobe do cigarro, ele vai para baixo com uma facilidade, mas sem enaltecer o rio que um dia fertilizou, precocemente, é bom dizê-lo, o doce amor que ambos sentiam. Vai descendo, descendo, e
pensando que só queria dizer isto. É o começo do fim. Ou melhor, houve um começo,
agora é o fim. Ele recolhe as ideias enquanto a sua antiga Ofélia flutua encobrindo a dor e
a notícia que ainda não tem pernas, mantendo a porta do elevador aberta para que o odor da nicotina, o mais rapidamente, se evapore, apagando as baforadas nervosas ali deixadas.
Como não era de praxe fazê-lo, o tabelião não foi mesmo chamado a intervir para as notas cartoriais do que poderia ter sido um enlace, apostando-se agora que o tempo se encarregaria do
remédio para o sonho que se vai, enquanto Strauss, que é do tempo da rolha, na garrafa de Coca-Cola, e da celebração com valsas, pega a sua casaca e embarca para tocar em outra freguesia. O homem não tem porto e a valsa não tem pressa, com a permissão de Lamartine, o poeta francês, por essa adaptação canhestra.
(José Carlos Sant Anna)
Prestei atenção ao curioso título, uma pista
ResponderExcluirimportante para saber da viagem desta história,
com uma narrativa excelente e as belas cenas
construídas (a tua marca literária...rss),
que motivados entramos no curso do texto, que
nos leva a cada cena, interagindo com os personagens
nesta valsa da separação.
E no ritmo da valsa, o casal guardados na memória
afetiva de ambos, deixa que o vazio (novo)
possibilite a renovação!...
Aprecio muito a arte musical do Raphael Rabello,
adorei escutar.
Total harmonia a música com o excelente texto, José Carlos!
Afetuoso abraço.
Uma despedida, o fim de um amor primorosamente descrito com a sensibilidade de um grande escritor e a frieza de quem deixou de amar. Cortante e intrigante como vc.
ResponderExcluirTenha uma alegre e iluminada quinta-feira.
Beijos, amigo
http://odiariodaescrava.blogspot.com.br/
Um magnífico conto.
ResponderExcluirSuperiormente escrito, parabéns.
Continuação de boa semana, caro amigo José Carlos.
Abraço.
Decididamente Strauss não tem culpa...
ResponderExcluirA culpa deve estar mesmo em Lamartine para quem "a mulher é uma flor que só à sombra exala o seu perfume..."
excelente
abraço
Vem aí o fim de semana e vim desejar que o seu seja perfeito: iluminado e feliz.
ResponderExcluirBeijos
Belo conto, tenso... E a musica linda!
ResponderExcluirAbraços, José Carlos!
Um texto com uma estética maravilhosa. E é tão bom quando encontramos textos assim... Obrigada, amigo.
ResponderExcluirBeijo.
Um texto maravilhoso que adorei. Um abraço com carinho
ResponderExcluirO vídeo no início do post e o enredo descrito de forma primorosa, "germinam" no leitor a emoção que só os grandes escritores sabem fazer.
ResponderExcluirRealmente um post maravilhoso.
Me perdoe pela indelicadeza. Agradeço a companhia e os gentis comentários deixados no meu Blog.
Um abraço e desejos de ótima semana.
José Carlos, quem conhece Raphael Rebello sabe que você iniciou bem esta sua postagem. É ele um mestre.
ResponderExcluirQuanto ao seu “Strauss não teve culpa” é um conto muito bom, que contém todos os requisitos desse gênero da literatura, e que envolve até o seu final. Parabéns.
Um abraço.
Vim, numa das dobras do meu dia, deixar um beijo para a sua quinta-feira ser ainda mais feliz :)
ResponderExcluirBeijooooo
Vim à procura de mais, mas reli o teu excelente conto com imenso gosto.
ResponderExcluirContinuação de boa semana, caro amigo José Carlos.
Abraço.
O vazio fundo e estreito de uma separação, no constrangimento do "exíguo espaço", a separar essas portas, não só a visível, mas também a invisível do que foi e do que poderia ter sido. Nos encontros e desencontros da vida.
ResponderExcluirO que deslumbra na tua prosa é essa mestria de falar de temas do quotidiano aliando uma escrita fluída e poeticamente sóbria (neste caso, a sobriedade que o tema exige), a uma originalidade de detalhes que enriquecem a narrativa; como essa referência à Canções de Ofélia de R. Strauss, e ao poeta Lamartine.
Sim, Strauss não teve culpa, e até irá pregar para outra freguesia, como tão bem escreveste. Porque a vida é o que tem que ser.
Gostei muito.
xx
Strauss, Lamartine e José Carlos... Ou melhor: José Carlos, Straus e Lamartine! E que belo texto soubeste compor, meu querido, dentro dessa tua invejável forma criativa. Bem delineados os meandros do comportamento e as consequências na alma neste mesclar da despedida sem palavras, da dor que fica, da dor que vai, e tudo a tentar uma recomposição, na certa individual, de que "o tempo se encarregaria do remédio para o sonho que se vai". Triste e doida constatação que soubeste bem entrelaçar neste magnífico texto.
ResponderExcluirApreciados também textos e poemas anteriores que, por absoluta falta de tempo, deixo de comentar.
Regressando e matando as saudades dos amigos que tanto gosto, como tu, e para ti deixando um punhado de sorrisos e um feixe de estrelas, tudo entrelaçando meu carinho e o desejo de um excelente final de semana.
Helena
Ai a imensidão de um "se". daquilo que poderia ter sido mas não foi.
ResponderExcluirBeijos José Carlos
Ora bem, em matéria de música, perdão, de escrita, este Strauss não está nada mal apanhado. Aliás, está magistralmente regist(r)ado no epílogo da partitura.
ResponderExcluir"Como não era de praxe fazê-lo, o tabelião não foi mesmo chamado a intervir para as notas cartoriais do que poderia ter sido um enlace, apostando-se agora que o tempo se encarregaria do remédio para o sonho que se vai, enquanto Strauss, que é do tempo da rolha, na garrafa de Coca-Cola, e da celebração com valsas, pega a sua casaca e embarca para tocar em outra freguesia. O homem não tem porto e a valsa não tem pressa, com a permissão de Lamartine, o poeta francês, por essa adaptação canhestra."
Abraço
Belíssimo texto, José Carlos!
ResponderExcluirEvocativo de desencontros da vida... que se instalam entre duas pessoas, que em tempo se amaram... e que agora cumprem apenas um ritual... triste... pelo vazio que faz sentir a ambos...
Strauss não teve culpa...
O romantismo ter-se-á perdido... nas ruas da amargura pela qual a vida, terá conduzido ambos... a que se encontrassem todas as quintas feiras... talvez, até aquela última quinta feira...
Adoro a quantidade de detalhes que o texto nos oferece... desde a a descrição do ambiente... ao sentir das personagens!...
Uma escrita densa... e brilhante, José Carlos! Parabéns!
Um grande abraço!
Ana
Momentos em ritmo de valsa, três tempos para nos embalar.
ResponderExcluirBeijinhos