– Vai,
me abraça, me aperta, me prende em suas pernas...
Enquanto
ela sussurra nos seus ouvidos estes versos da MPB, ele pensa "que
safadinha, não sei mesmo o que ela quer... mas tenho certeza do que estou
prestes a perder, se eu não agir rápido entre as apoteoses das faíscas deste sonho, que ainda curto em sinuosa reta, eu danço...”
Depois,
com a voz trêmula, ela lhe diz, sem esconder as lágrimas nos olhos, que não
voltaria mais àquele quarto. Aquela seria a última vez que se encontravam nas
tardes mornas do verão, assim, às escondidas, pois, como nasce uma planta, estava selado esse destino, dissolvendo-se pelos dedos, misturado ao suor e cabelos dos dois amantes.
Afinal, eles sempre souberam que aquela relação não tinha passado nem
futuro, era só um presente que se acabava a cada vez que repunham a roupa,
fechavam a porta do quarto do hotel e saíam como bons moços para cair no
abismo da rotina como acontecia aos musgos.
Se
acontecia alguma coisa depois, era um ou outro telefonema na maioria das vezes
para marcar um novo encontro em que, fervorosa, ela diria na procura constante da lógica de um sonho, atropelando as
palavras, que precisavam se encontrar... que ela tinha uma surpresa... ele ia
adorar... que ela não sabia o porquê, mas estava feito uma lagartixa, subindo pelas
paredes... que esta semana, pensando nele, já tinha se masturbado duas vezes...
que a escola lhe roubava todo o tempo que dispunha para ficar com
ele... que ela não sabia porque fazia a pós, uma vez que o que precisava mesmo
era ganhar algum dinheiro... que ele não ligava pra ela... E perguntava-lhe,
seguidas vezes, e você? E você? Pensou em mim?
Ele
ficava na linha ouvindo a sua respiração, em muito parecida com a dela,
ofegante, do outro lado, como se estivesse à borda de um poço medindo a luz do seu interior.
Ela
vestia a roupa cabisbaixa, cobrindo primeiro os seios, acariciando-os antes de
cobri-los com o sutiã, como se ainda fossem as mãos dele, bolinando-o; depois
põe a blusa e começa a fechar os botões sem pressa. Pega a saia sacudindo-lhe a
poeira, pois ela ficara no chão; estira-a sobre a cama desamassando-a com as
mãos, empina a bunda para mostrar-lhe o que ele estava perdendo ao deixá-la ir
embora, em seguida, veste-a, sem pôr a calcinha, que ficara enrolada numa
cadeira como se fosse um canudo; apanha a bolsa, os livros e os cadernos que
trouxera nas mãos, e sai sem dizer uma palavra. Era definitiva a separação, é o
que ela parece querer dizer. Apenas a dor, desenhada no gesto que cobria a
pele do frio que sentia, ficara ali entalada.
Com
impulso, ele avança sobre calcinha e, desenrola-a lentamente; depois esfrega no
seu nariz e aspira aquele odor excitante que ficara ali grudado, para sempre,
guardando-a como a um troféu de caça. E, em seguida, debruçado na janela, fica a olhá-la, debulhando a casca entre os dedos, a atravessar a rua em direção ao ponto de ônibus. Com o olhar perdido, aguarda
até vê-la fazer um sinal para um taxi, enquanto ele aquece as mãos como se
ainda tivesse aquele fruto no meio delas.
Ele
balançava a cabeça do outro lado da linha, sem que ela percebesse o movimento
que fazia. Abria a gaveta da sua mesa de trabalho, olhava o retrato dela
escondida entre os seus papéis, rascunhava a palavra “muito” várias vezes
numa folha de papel, sabia que o dia em que ele levasse essa questão para o seu
analista fundiria a cabeça dele. Que seriam dezenas de sessões para decodificar
a palavra ‘muito’ rasurada n vezes em
pedaços de papel, quando não vinha acompanhada da palavra Maria. E ficava mudo
em seguida.
E ela
perguntando se tinha acontecido alguma coisa, porque ele estava tão calado, se
não queria mais vê-la, o que ela tinha feito de errado... Se ele sabia que ela
já estava depilada porque não queria que a visse peluda... Se isso não o
deixava excitado... que não aguentava mais aquela casa, lavando pratos o dia
inteiro... E ameaçava chorar, em seguida dizia “não, ele não vai ter o prazer
de me ver chorar”..., baixinho, mas ele a ouvia do outro lado e, quando ela
perguntava se ele tinha ouvido alguma coisa, ele lhe dizia que não...
Na
cabeça, ele ruminava um monte de perguntas desfocadas, nuas, enquanto o canal Brasil exibia Luz e
Trevas, o bandido da luz vermelha. Seus olhos não piscavam olhando a telinha em
que Ney Matogrosso, de calça clara, sem camisa, barba por fazer, atrás das
grades, questionava tanto a sua vida, comparando-a a um pêndulo, dizendo que não sabia o
que queria, e oscilava de um lado para o outro, como ele o fazia agora por
motivos diferentes.
A vida
é assim, um turbilhão de desafios que um domingo à noite deságua quando a
perspectiva da segunda-feira vem à tona e ele, naquele instante, fingindo que
acompanhava aquela história já apagada da memória de quase todos que conheceram
o seu lado trágico, olha para trás e percebe que fora mais um domingo a
escorrer chocho por entre os dedos, e que ele nada fizera para engrandecê-lo,
nada de útil fizera, tocando a sua carne real, além de ter tão somente zapeado
pelos hortifrutigranjeiros do mercado, tal como o fizera ainda há pouco com a TV – até se
deparar com Ney Matogrosso na pele de ator –, escolhendo frutas e legumes para
a semana vindoura. Era o que fazia de melhor atualmente, deixando as sombras vestidas de sol ao largo.
Ficava
horas olhando as frutas. Para ele, entrar no mercado e sair pelos seus
corredores, olhar atento em cada rótulo, examinar cada produto como se fosse um
fiscal da vigilância sanitária, mas sem mover uma palha para denunciar qualquer
anormalidade encontrada, era uma descoberta nova. Quase uma nova paixão queimando as suas entranhas.
Seguia
arrastando o chinelinho, esmaecido de tanto sol que recebia na varanda do seu apartamento. Chinelo que ele não não se dispunha a trocá-lo, embora já tivesse um novinho
em folha. Recebera dela no penúltimo encontro, e seguia, cheio do amor puro, que não se ignora, apalpando tudo que lhe
despertasse uma contemplação vaga nas prateleiras e gôndolas do mercado.
Daquela
tarde distante o silêncio é o que resta no vale-tudo das chamas do escritor
barroco, redundante, prolixo, como ela o rotulava, para provocá-lo. Os dias
se movem. Que culpa se tem pela peregrinação dos dias anunciando auroras? Pela sua corrida sem freios?
Pela sua dança milenar? Não há luz que não torne a morte inquieta.
(José Carlos Sant Anna)