Foto arquivo pessoal
A primavera já tinha passado. Chico Bobina procura em vão uma explicação para a loucura que é a
vida. Essa doideira que às vezes não cabe em um metro e meio de chão, enquanto,
em plena manhã, pelas vidraças do quarto do hotel em que está hospedado, ainda escorre a luz das palavras e dos sonhos da
menina Anzóis, cortada por uma bala traiçoeira. Perdida.
Chico Bobina, sufocado pelo silêncio, estava com as malas prontas,
sentado à beira da cama. Ao ouvir a campainha, afastou o olhar das vidraças da janela, levantou-se e abriu a porta do
quarto para o mensageiro que as levaria até a recepção do hotel.
Abreviava, depois da morte sem sentido, inútil, sua viagem pela
terra das pedras preciosas com uma única recusa: a de olhar para o céu. Já não
queria ver aquela nuvem alongando o braço para ele na terra. Bastava-lhe um
único malogro e a sombra que arrasta a palavra vida.
Depois de uma noite de suor, agora na cafeteria como se estivesse
nas exéquias da menina Anzóis, ao ouvir a história que o deixou emudecido,
Chico Bobina pensou que poderia ter-lhe dado pelo menos uma lua pequenina para
enfeitar ainda mais o seu colo onde estavam guardadas duas uvas na transparência
da blusa, depois de tomá-la pelas mãos e arrastá-la como a uma palavra, um
nome, uma bandeira, dizendo-lhe:
– Vem, vem comigo, minha espiga de milho, vamos irrigar o milharal
que nos espera na outra margem do rio.
Ora, o natural para quem está viajando, seria buscar outro refúgio
para não ficar na mesmice para degustar um cafezinho àquela hora da noite,
ainda que fosse bom deambular para ouvir a respiração das flores, se as houvesse, pelas desfocadas ruas da cidade àquela hora.
Era o que pensava Chico enquanto caminhava e decidia o que fazer
olhando as vitrines das poucas lojas que ainda mantinham, pelas redondezas, suas
portas abertas. Ele gostava de ficar ensimesmado diante da xícara se
perguntando: para que serve um poeta?
Àquela altura, conclui o "turista acidental" que estava
cansado para caminhar pelos arredores do hotel em que estava hospedado em busca
de outra cafeteria, ainda que o café gourmet de toda a região fosse reconhecido
como um dos melhores do país, independentemente de cafeterias.
Chico acertadamente decidiu que não faria muita diferença ao
paladar entrar na cafeteria da noite anterior ou, então, estava, sem se dar
conta, sendo arrastado por forças estranhas para o mesmo Café, o que, decerto,
não o desagradaria. Era o que pensava no meio da noite roída pela bandeira dos
humilhados estendendo as mãos para a esmola. E entrou.
Claro que não é bem assim. Viciado em café, Chico sabia muito bem
que, para se obter um bom café, conta também a habilidade, a experiência de
quem maneja a máquina e faz o café.
A menina Anzóis, de muitas garras para o trabalho, levava muito
jeito, apesar do pouco tempo que trabalhava como barista. Qualquer dia daria um
salto. E, viajante experiente como ele era, Chico sabia o que buscava.
Pois, viajando, o que mais Chico queria era novidade, qualquer que fosse,
e não importava onde ela estivesse, senão não faria sentido arrumar as malas.
Todavia, o bom senso não recomendava que ele ficasse deambulando pelas ruas
desertas de uma cidade que mal conhecia, por isso voltara à mesma cafeteria da
noite anterior. Ali se sentira bem e tinha conhecido a conterrânea, cujo
nome não chegara a gravar, mas tudo o mais da moça ele guardara dentro de si
entre sonhos e fantasias.
Se não chegara a gravar o nome da menina é porque,
compreensivelmente, estranhara o inusitado do seu sobrenome. Nunca ouvira alguém
se chamar Anzóis, ainda que fosse um sobrenome. Guardara-o, então, o sobrenome como
a um tesouro, repetindo-o com os passos nas nuvens, sem saber por onde andavam
os seus olhos. Como se fosse um poema que nunca se acabaria.
Chico não sabe dizer que água ela usou para fazer o seu
café, pois, acometido de um arroubo, um entusiasmo tal pela conterrânea chegou
a compor, ali mesmo no balcão, um versinho para o seu sobrenome. E quando, por
um momento, ficaram a sós no balcão, ele o recitou, para o que seria um bom começo uma vez que o depois
não se concretizaria, quase sussurrando:
– O teu sobrenome Anzóis rima com a doçura da tua voz.
Depois que a deixou naquela noite, pareceu-lhe brega aqueles
versos ingênuos, mas já se via que Chico Bobina nutrira um afeto repentino pela
moça ao ouvi-la entrecortadamente contar uma história corajosa, e o desafio que
fora chegar ali há três meses para construir uma nova vida.
Chegaram mesmo a combinar um chá para dois dias depois quando
seria a sua folga semanal, por isso a relutância de Chico em não voltar ao
mesmo café. Não queria dar bandeira. Ou deixá-la pouco à vontade, constrangida,
no trabalho.
Mas que havia um tácito compromisso entre ambos, havia. Ele tinha
a certeza de que ela não se arrependeria de ter aceitado o convite. E se não
guardara o prenome, como já o disse, é porque calou mais alto o sobrenome dela
e vai-se entender o porquê disso na cabeça de Chico Bobina. E quem entende o
desenho mágico das andorinhas cortando o céu? E quem entende a cabeça do ser humano?
Paciente, a balconista naquela noite também tomada de um estranho
sentimento atendia a um chamado da outra mesa e voltava depressa para perto de Chico Bobina
retomando o fio da meada. Media as palavras, mirando bem dentro dos seus olhos.
Acho que foi esse jeito manso, delicado, sedutor, que mexeu com os sentimentos
dele.
Não se sabe se estava comovido com o que ouvia ou era o brilho dos
olhos da conterrânea. O fato é que perdeu a conta dos cafezinhos sorvidos
àquela hora que, fatalmente, o deixaria acordado por horas rolando na cama do
hotel desacompanhado, perguntando para si mesmo se ela lhe daria a
pele, os lábios, os seios.
Agora, de mãos espalmadas no balcão do café, Chico Bobina sentia o
calor das lágrimas e o impulso do grito abafado na garganta, sem sequer ouvir o
bater do seu coração.
Não sabia de onde vinha a dor, mas sentia a sua carne estertorada
e a boca sem saliva. Do lado de fora vinha o frêmito do vento nas folhas
anunciando chuva, embora o verão já tivesse mostrado os primeiros sinais de vida naquele corpo. Aquela não era uma terra de vinhas ou de
pomares, mas uma terra de minérios que contavam enredos que venceram a batalha
dos olhos de Chico em outras ocasiões passeando por cidades históricas.
Resoluto, Chico entrou na cafeteria. No exato momento em que sua
amiga e colega de trabalho tinha recomeçado a contar o que tinha ocorrido na
noite anterior depois que cerraram as portas da cafeteria e se dirigiam à
parada dos ônibus para o retorno às suas casas em lados opostos e distantes. Havia sempre um mistério no meio da noite.
Ao entrar na cafeteria, Chico tinha estranhado o fato de o café
estar abarrotado, com todas as mesas ocupadas e certa curiosidade pairando no
ar. Ele já tinha aprendido a ler nos olhos da noite o que ela escondia dos homens.
Havia uma transparência no ar da cafeteria. Ele saberia o que estava ocorrendo, se tivesse lido o musgo involuntário colado à porta de vidro: Silêncio, o Café está de luto.
Acomodou-se, ouvindo-a em silêncio. A menina Anzóis nascera para
inventar um corpo de pétalas, ele percebera quando trocaram os primeiros sinais e palavras. E Chico recordava-se. A moça, que só tinha para
ele o sobrenome, sem o saber, trazia nos olhos uma flauta que o encantava, que
o comovia, enquanto desfiava palavras desencravadas nas ladeiras de pedras,
rememorando a sua vida numa cidade pequena no interior da Bahia, iluminando os
seus olhos.
Lembrava-se da sua escolha definitiva por aquela cafeteria; de que
antes da escolha definitiva, entrara e saíra de duas outras no mesmo passo, sem
entender a razão, uma vez que elas tinham o requinte que ele estava acostumado.
Aquela cafeteria fora achada ao final da avenida que contornava
toda a cidade, próxima a um Shopping Center, mas antes de desembocar naquela
rua já tinha percorrido outras. E aprendera em pouco tempo o que aprendera
aquele povo durante toda a vida: andar por aquelas ruas significava aprender que
o nome da cidade era também liberdade, como ensinara um ilustre político local.
Aquela, por sua vez, fora a rua onde Chico Bobina metera a sua
chave, sobretudo quando já derreado pelas ladeiras, que embelezam a cidade, e
se perdera pelos amplos salões que aquela moça parecia oferecer-lhe aquela
noite.
Também se lembrava de Nelson Rodrigues, embora as razões dele
fossem outras, ao afirmar que nem todo homem tem a sorte de poder fazer a escolha certa da
mulher ou da cidade. Chico Bobina não sabe se teria feito a escolha certa. Tudo fora
uma incógnita no sutil encontro.
E porque Chico não sabia dos jasmins que voavam dos seus cabelos
se misturando ao aroma das rubiáceas, no tablado do café, começou ali mesmo,
entre um cafezinho e outro, um diálogo que o levou à depressão por
algum tempo:
– Os teus cabelos, por que cheiram tão bem?
– Da alegria de viver e do xampu de sementes de alcachofra – respondeu
Anzóis com um sorriso que revelava a brancura dos seus dentes.
– Anzóis, você sabia que é da tua doçura o aroma que exala da xícara fumegante
deste cafezinho?
Ela não respondeu, mas deixou um longo suspiro no ar.
Lembrava-se deste colóquio sem saber agora se fora real quando se
viu sozinho na cama do hotel, depois que a colega de trabalho, com lágrimas nos
olhos, completou que não vira de onde saíram os motoqueiros, tão pouco os policiais que
os perseguiam pela avenida.
Depois que eles passaram como um azougue pela parada dos ônibus, a
amiga vira do outro lado da rua um corpo caído. Era o corpo de Anzóis
estirado no chão, ensanguentado. Num desespero vão, correu para socorrê-la. Era tarde.
(José Carlos Sant
Anna)