QUANDO ELE APARECEU NAQUELE ERMO DE
CIDADE
roçando-lhe palavras doces com os lábios colados à ponta da sua orelha e,
progressivamente, a língua, a impaciência do sono começou a fustigar a sua vida
com uma sede de carícias que não a abandonavam nos seus sonhos. Então, um céu
de nuvens verdes cresceu de repente e ela descobriu que poderia sentir o voo
dos pássaros em outras árvores. Poderia conhecer outros ventos, outros
nevoeiros.
Havia promessas na
teia de mistérios da nudez daquele amor que ardia no carvão da sua fogueira.
Era pegar ou largar. Ou, então, morrer afogando-se naquela paisagem de trevos,
abandonados, vestindo-se de frio, fazia tempo. Paisagem que lhe causava horror. Não sentia o perfume das flores, e a paisagem já não mexia com o seu coração.
Ela queria outro destino para a sua vida, queria outros rios. O da sua aldeia
já não a satisfazia, embora amasse o de Alberto Caeiro. Sonhava com um rio
assim. E tomou a firme decisão de acabar com a sua insônia. Iria encontrar-se,
como ele propunha sentado ao pé dela debaixo de estrelas e de luas, como ela
era romântica, meu deus, com aquele homem na sua metrópole, na sua cidade grande, como ela
sempre imaginou que pudesse acontecer. Tinha guardado o endereço dele dentro do
sutiã para não perdê-lo. E o mantinha guardado dentro do peito, em suspiros.
Cantarolava baixinho
na inocência daquele céu pardo enquanto arrumava a mala. E não despregava pelo
vão da porta os olhos do seu irmão mais velho, sentado no sofá da sala. Tentava
adivinhar-lhe miríades de pensamentos que soçobravam em sua cabecinha de
adolescente maduro; ele, por sua vez, acompanhava cada movimento que ela fazia,
ouvindo o seu mantra, que arranhava as cordas vocais à medida que saltava as
notas como uma soprano desalmada, espancando a partitura. Eles se entendiam
pelo olhar. Este irmão mais velho sempre fora a fonte do seu caminho. Nunca
esqueceria os conselhos, as conversas, as confidências, sob aquela frondosa
mangueira nas tardes mornas e nas noites de lua cheia, que enchiam o quintal da
casa da família.
Ela, o irmão velho,
duas irmãs menores e os pais constituíam o núcleo familiar. Lua e mangueira os
adornavam sob o violão do irmão onde as andorinhas sempre podiam entrar sem
pedir licença.
Na azáfama de arrumar
as malas, quando dizia alguma coisa ou perguntava por alguma peça de roupa, a
sua voz denunciava uma sombra breve, de tristeza. Um luto quase imperceptível,
que se esbatia, se esvaía porque dentro de si o que havia era a alegria do
vento que, no entra e sai pela casa, parecia rir sem motivo, porém tão baixinho
quanto à música que ela suspirava.
Segurava as lágrimas
olhando cada peça de roupa, fingindo experimentá-la ao exibi-la sobre as suas
vestes por cima do corpo, depois dobrava e guardava no fundo da mala. Havia
muita coisa para olhar e guardar. Sairia sob o peso das labaredas, mas não
voltaria encarquilhada trazendo outro fardo. Só voltaria lá a passeio. Custasse
o que custasse. E olhe lá, daquele frio arrancado a fórceps, queria ver-se
livre. Por isso, fazia-o sem pressa e, também, porque só embarcaria na
madrugada do dia seguinte.
Sabia que era uma
viagem para apagar o incêndio que consumia suas entranhas, fechar o abismo que
a incomodava tanto. Media cada palavra sem a régua da emoção para conversar com
a mãe porque não queria nenhuma complicação para a sua noite sem guia, menos ainda
mal-entendidos, as promessas que não se cumpririam, enfim, nunca o disse
claramente a sua mãe que não voltaria, mas sabia no seu íntimo que ela
desconfiava, ainda que a levasse escondida dentro dos seus olhos. Saíra do seu
ventre, ouvira seus primeiros vagidos. Vira-a crescer e aprendera a conhecer
seus impulsos, suas fraquezas.
Embora ela fosse muito
jovem, ainda não debutara, estava convicta da sua decisão de cortar o cordão
umbilical com a família, de andar pelas relvas despenteadas da cidade grande.
Dizia para si mesmo que tinha que dar certo, mesmo que aquele homem por quem se
sentia apaixonada não tomasse conta dela, ela arrumaria sua vida numa metrópole
de qualquer outro modo. Só não venderia o seu corpo por nada desse mundo, não
queria dar esse desgosto à sua mãe.
– Depois da
comemoração dos seus quinze anos, você vai embora, minha filha! Só faltam duas
semanas. – Disse-lhe a mãe com os olhos bem abertos, fixos, porém vagos,
abraçando-a fortemente contra o seu peito, porque a pensar no firme desejo de
reinventar a vida naquele momento, querendo fazê-la acreditar que ainda era
cedo para descobrir os segredos das palavras.
A moça sempre disse
que aquela cidade era pequena para ela. Nunca deixou de sonhar, bem sabia.
Já se alimentava de palavras emolduradas nas pautas dos seus cadernos
escolares, há muito tempo. Levaria bastante alimento que a ajudariam a
espairecer suas angústias de mulher, qualquer que fosse a penumbra que a
ocultasse.
Enquanto o ônibus
avançava pela estrada, ela dormia sem que os sonhos quebrassem a conspiração da
noite. Não via a hora de sentir o corpo quente do destino na sua vida. Confiava
que o homem viria colhê-la, como a uma flor, ao amanhecer na estação rodoviária.
Agora o motorista pisa
com força no pedal dos freios para contornar o viaduto que leva os embarcados
na cidade distante à rodoviária. Os minutos que se seguiram foram marcados por
muita ansiedade até que o motorista estancou o ônibus no meio-fio, puxou o
freio de mão, abriu a porta e postou-se à frente dela, cumprimentando os
passageiros à medida que eles desciam carregando as bagagens de mão.
Ela levantou da sua poltrona espreguiçando-se, deu um longo suspiro, acompanhou a fila indiana que se formou no corredor do veículo, espreitou a janela e
pensou "apetece-me a aurora para continuar sonhando" e desceu do
ônibus com uma sombra no rosto.
Enquanto aguarda o ajudante
do motorista liberar a sua bagagem, apalpa o sutiã para saber se o endereço está bem guardado e, de mãos dadas com as nuvens, ansiosa, sonha
intensamente, de olhos bem abertos, esperando, com uma ponta de dúvida, pelo
homem que sorveu o mel dos seus grandes lábios. Ninguém sabe quanto tempo será
a espera.
(José Carlos Sant Anna)
Foi quase num fôlego que li esta sua história, tão bem contada, com uma estética fantástica. Voltei a lê-la para saborear cada frase, cada parágrafo, cada emoção...
ResponderExcluirQuanto à menina que, nos seus 15 anos quis arriscar outros voos, digo também: "Ninguém sabe quanto tempo será a espera."...
Uma boa semana, meu amigo.
Um beijo.
sou declaradamente admirador da tua Poesia.
ResponderExcluire atrevo a dizer que, em certo sentido, é ainda poesia que fazes, quando em prosa escreves.
acompanhar a trama, a minúcia e a delicadeza do teu conto é como sentir o borbulhar de vida (vivida) da tua jovem heroína e de sua espera.
caloroso abraço, meu amigo
A delicadeza de uma escrita por demais fluente e envolvente, que nos transporta ao cerne da trama...
ResponderExcluirGostei da história desta jovem, tão real, tão sentida...
Nunca conseguiria chegar aqui, clicando na foto que me aparece nos seus comentários. Ia sempre parar ao sítio onde tenho deixado os meus...
Grata pela atenção...
Abraço
É... também li num fôlego essa história que se repete tanto na vida real... e com 15 aninhos!! E o que será que aconteceu... Fica para nossa imaginação, assim acabam os contos. Muito Bom, muito bem contado, já se fez essa sua marca.
ResponderExcluirUm beijo.
Uma ótima semana.
a paixão sobrevive
ResponderExcluirde pressas
[contém 1 beijo]
De leitura arrebatadora... e imparável!...
ResponderExcluirParabéns pelo seu magnifico texto, José Carlos!
Ainda que se adivinhe um possível desfecho... foi maravilhoso viver a sede da vida aos 15 anos, através das suas palavras e desta sua personagem...
Adorei!!!!
Um grande abraço, José Carlos! Continuação de uma feliz e inspirada semana!
Ana
Oi Sant Anna, estamos de volta! Parabéns pelo texto poético tão bem elaborado. É quase um poema em prosa. Grande abraço. Laerte.
ResponderExcluirCaro José Carlos,
ResponderExcluirA soma de um Poeta inspirado e um excelente Escritor
resulta nesta obra de arte.
Maravilhosa e tocante narrativa que me absorveu de
forma única (estou atropelada pela falta de disponibilidade
de tempo para leituras e somente hoje aqui no teu
espaço que acompanho atenta...) e grata por este momento
de leitura aqui, amigo.
Sempre admirável a tua literatura de alta qualidade!
Beijo.
Encontrei nos comentários o link para aqui chegar.
ResponderExcluirGostei de reler e ouvir o Milton, um dos meus músicos brasileiros de eleição.
Obrigada pela visita...
Abraço
os naufrágios são belos....
ResponderExcluirbeijo
Mel, mel é sua prosa para olhos gulosos.
ResponderExcluirTinha lido o capítulo posterior, ou seja, li do meio para o princípio. O que é também saboroso. Não sei se há capítulo precedente. Vou ver. De qualquer jeito, você tem mesmo jeito.
Um conto, quem sabe excerto de romance ou novela, admiravelmente narrado.
Abraço.