GUARDANDO UM CRISTAL NAS
ENTRANHAS,
um coração inquieto e sem querer voltar atrás na trajetória delineada antes de
embarcar para a cidade grande, a menina imagina ouvir a sinfonia de Berlioz,
esmagando suas dúvidas, depois da longa tensão da viagem, quando, tremidas,
outras pedras se acomodaram no tabuleiro de xadrez e no destino dos lenços acenados,
enquanto o motorista estremunhado levava o ônibus do parque de estacionamento da rodoviária de volta à garagem da empresa.
Quase doze horas de
viagem à espera do garanhão para a bela potranca. Em que prados se perdera? Sem fumaça branca. Mas, sim, um quarto de lua no céu e a monotonia da
estrada, esburacada, machucando seu corpo, suado, as lágrimas silenciosas, além
do stress dos preparativos para convencer a família de que a decisão tomada seria para inventar um futuro sem tragédia grega pela frente, que a deixaram fragilizada. Ela é um caco de um relógio atento, sabendo que a ponte para o futuro poderia demorar minutos. Ou uma eternidade.
Pensando o tempo como o lugar donde voam as nuvens, como ela acredita, a
menina, agora, ligeiramente revigorada, quase dona de si, estende os braços, alonga os
dedos e abandona o olhar na ternura seca protagonizada por um casal de
mendigos, bem à sua frente, no saguão da rodoviária. Absorta, ela está a querer
adivinhar o que o casal, pombos enfunando a cauda como um pavão, anuncia para o mundo, numa
intimidade rara para um espaço público, enfeitada com bandeirinhas e música, sob aquele céu claro.
Parece que somente ela
repara no casal de mendigos e na viagem matinal que os dois fazem, ainda mal
acordados, porém apoteóticos, levando-a, particularmente, a reduzir a dor do
seu medo na aventura em que se embrenhou. Parecem felizes e distantes do
burburinho em volta deles pelo jeito brejeiro como se procuram e se entregam.
Indiferentes, à frente de todos.
A menina quer aprender
com eles a naturalidade dos gestos, perceber a melodia que emana dos seus
corpos sem rasgar suas vestes, quer ser igual e ser diferente ao mesmo tempo,
como se lhe fosse possível ser duas em uma nota só. E fica os observando como
as mulheres faziam nos romances russos do século passado, enquanto os dois
recusam, com aquele ar de deboche que aparentam, queimando o gozo das achas no
cio, a olhar para o céu.
Essa ternura, dissolvendo-se em carícias pelo corpo de ambos,
trocada sem cerimônia ali a vista de todos e fiscalizada pelos seguranças, é o
refúgio da fome e da solidão que consome o amor puro que antes o vulgo ignorava,
como se eles estivessem num palácio de ilusões. Contagia o desprendimento
deles sem um terapeuta de plantão para uma manhã tão bem concebida. Agora são muitos os olhares nos dois pombos que arrulham no salão
de espera da rodoviária.
Na febre da conversa,
sempre o amor de rastros, o alimento da febre do corpo, sem extrapolações como
se conhecessem o limite imposto pelos seguranças e sociedade. É essa "conversa íntima" que entretém a menina “arrojada”, como a chamou algum tempo depois a feminista
que conheceu a sua história em detalhes, na sua espera, a sonhar que já
andava lá por fora, num gume de frio inquieto.
De vez em quando ela se
levanta do banco de madeira, na manhã ainda estremunhada, e percebe lá no alto,
misteriosa, a última estrela recolhendo a luz dos seus olhos ensimesmados, que,
em vão, ainda procura reconhecer um sinal nos rostos repetidos nos assentos que
circundam aquele espaço, enquanto o sol, já pendurado no telhado da rodoviária,
depois de ter-se espalhado pelo horizonte, traz a luz, o calor e um cheiro de
vida e caras, novas, para todos os que já foram recebidos por seus familiares e amigos.
O silêncio interior,
pescoço esguio, “ah, vontade de esganá-lo e vê-lo evaporar-se por inteiro”,
pensa a menina, ao vê-lo perseguindo-a em torno da sua bagagem, travando uma
luta desigual entre a de dentro e a de fora, para não deixar que a tristeza
comece a dar um sentido diferente à vida que planejou.
Uma borboleta perdida do
seu panapanã esvoaça com asas de esperança pelos seus cabelos longos,
fazendo-lhe confidências, mas a sua vontade é de fazer voltar a ampulheta. Mas
ela sabe que agora é tarde. E diz para si mesmo “ah! Se eu tivesse trazido
minha rede de caçar borboletas”! E finge que é uma estátua para que os outros
não percebam seu desassossego.
E os dois seguranças,
que conhecem bem os mendigos, os vigiam, sem trégua, pois sabem que qualquer
descuido com eles a água transborda. Não deixam que abusem da confiança que
lhes concedem em silêncio cúmplice. Sabem que eles sobrevivem do pouco que
recolhem dos milhares de pessoas que entram e saem dali.
A menina também, do alto
da sua complacência, com discrição, os observa contando os dedos infinitamente,
enquanto reza para que chova e ela possa contar também as gotas de chuva, o que
demandaria mais tempo e atenção, afugentando a ansiedade, que a devora. Já
brincava assim na sua pequena cidade, gostava de dançar com o cabo da vassoura, seu Fred Astaire,
na chuva, ainda que lhe custasse quase sempre um castigo por chegar com a roupa
molhada, colada ao corpo, deixando os bicos dos seios à mostra.
Abolida a noite
completamente e com o sol esparramado, ela sabe o que tempo está passando, que
o tempo de espera está se esfumando, e tudo que ela deseja é ter um destino que
lhe seja igual. Ao desejar um perfume igual ao deles, sabe que inveja, sem
querer, os companheiros de viagem. E perdida a última estrela, ela abre bem os
olhos, e somente ela sabe o quanto o burburinho a incomoda. Reconhece o
silêncio. É o mesmo silêncio que a perseguia com ruídos nos cafés quando eles
se escondiam numa mesa nos fundos e o olhar dele, planando, saltava do calor
feminino dos seus seios para os olhos líquidos de mar que o fizera estremecer
como se ele fosse um colecionador de pérolas.
Ela estende o olhar mais
uma vez procurando o que já supõe perdido, desfraldando a bandeira secreta que
trazia dentro de si. Ao mesmo tempo, um gato se aproxima e vai se enroscando em
seus pés. A mendiga se afasta do seu parceiro e chegando perto da menina lhe
pergunta:
– É seu, este gato?
– Disse a mendiga com sorriso desenhado de bondade.
– O meu ainda não
chegou e não sei se ele virá – responde a menina, revelando, depois de quase quinze horas sem uma palavra, a beleza da voz e a interior.
– Posso tomar conta
dele?
– Do meu gato?
Pode, se ele quiser, ele é meu, mas não sou dona dele. – Agora o sorriso da
menina acaricia o corpo da mendiga, de um modo que ela não estava acostumada.
– É desse gato
aqui, que estou falando, menina! Você parece no mundo da lua... – Disse-lhe a
mendiga, embevecida com a ternura repentina que descobriu no rosto da mulher ainda menina.
E a mendiga se afasta, acariciando
os pelos do gato, que já estava encarapitado no seu ombro, quando ouve o ruído
da chamada do telefone da menina e percebe o seu alvoroço para atendê-lo.
(José Carlos Sant Anna)