Crônica de Arnaldo
Saraiva, escrita em 1987.
* Remexendo nos meus alfarrábios, encontrei o texto abaixo escrito por Arnaldo Saraiva (1939), intelectual português, contista, cronista, que sempre manteve estreitos laços com a intelectualidade brasileira, sobretudo da área das letras, e publicado em 1987, na Revista Brasileira de Língua e Literatura, ano IX, número 15, p. 72-74, mantida pela Sociedade Brasileira de Língua e Literatura em convênio com a Secretaria Municipal de Cultura de Niterói - RJ.
A pergunta que fica: O que mudou no país ao longo desses 30 anos? "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"?
A pergunta que fica: O que mudou no país ao longo desses 30 anos? "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"?
De acordo com um grande humorista brasileiro “é preciso um escritor bem mais medíocre” do que ele “para descrever com precisão a atual situação do país”. Para um cronista carioca, que não esqueceu as discretas maneiras mineiras em que se formou, a hora brasileira “é fosca, medíocre”. Mas um fundista de São Paulo pode dispensar as ironias e as atenuações: “Esta é uma fase extremamente sombria nos fastos republicanos: um período de descrédito generalizado, que assume o aspecto de uma longa noite escura, o firmamento carregado de presságios".
Descrédito (político) generalizado, sim.
Tem-se a impressão que nenhum cidadão confia mais nos políticos que escolheu ou
lhe couberam em sorte – prefeitos, governadores, deputados, senadores,
ministros, presidentes –, salvo quando eles são amigos ou parentes. Tem-se
mesmo a impressão que nenhum político confia em nenhum político, nem no
correligionário, a não ser pela solidariedade que sempre pede a corrupção.
Falsa impressão? Talvez. Mas que pensar
quando se sabe que uma só família do Nordeste deu dez senadores e deputados
atuais? Que um ministro em exercício foi da ARENA, do PDS, do PP, outra vez do
PDS, esteve no PMDB e inscreveu-se no PFL? Que em menos de quatro anos os
funcionários do Estado da Paraíba passaram de 33 mil a 101 mil, dos quais 28
mil entrados quando se aproximavam as eleições? Que os partidos, a começar pelo
principal, que simultaneamente sustenta e ataca o Governo, são quase todos
ficções ideológicas, criações artificiais cuja doutrina ou teoria pode oscilar
ao sabor das mais despudoradas conveniências?
Faltam elites políticas, impossibilitadas
pela longa ditadura militar – dizem alguns. Falta é vergonha – dizem outros. Se
não, como explicar que todos os graves problemas com que se tem debatido o país
pareçam adiados ou até agravados e que, a propósito da Constituição, do tempo
de um mandato, ou de nada, nas câmaras e nas instâncias partidárias se
multipliquem e eternizem os jogos, os casuísmos, as hipóteses acadêmicas?
Enquanto isso, fazem-se alguns progressos
técnicos mas vai aumentando o crime e o roubo, vão subindo os impostos
(disfarçadamente, se possível), não se controla a inflação, não se combate a
corrupção e as “mordomias”, admite-se ou estimula-se a ilegalidade, favorece-se
o êxodo para o estrangeiro. Portugal incluído, que para isso serve a comunidade
luso-brasileira. O proibido jogo do bicho toda a gente o joga às claras: em
casas de câmbio ou na rua o dólar tem uma cotação bem mais alta do que nos
bancos; o jeitinho e o expediente triunfam sobre todas as regras; as
autoridades transformam-se em bandidos, e bandidos em autoridades.
E enquanto isso um trabalhador pode ganhar
menos de 2 mil cruzados por mês (o salário mínimo), quando um deputado, que tem
um “subsídio fixo” (o salário) de cerca de 13 mil, pode acabar por ganhar mais
de 350 mil, graças a um sem-número de artifícios e de jetons”: ajudas de custo,
subsídios de viagem, de habitação, de presença, de correio, etc., etc.. Lá como
cá.
Perdido o crédito nos seus dirigentes ou nas
suas elites, cuja regra geral de comportamento parece ser a do “salve-se quem
puder” ou – se se trata de gente da classe média – a do “enriqueça rapidamente
e sem grande esforço”, a maioria da população brasileira vira-se como é natural
para os seus clubes ou ídolos de futebol, para os seus videntes e para os seus
místicos, como D. Neila Alkmin, que vê como ninguém reservas minerais no
subsolo brasileiro, como Pai Zezinho de Ossãe, que prevê desastres ou vitórias,
e como a Mãe Stella de Oxóssi, que nada quer com a sincretismo religioso. E
mesmo que frequente bordéis ou motéis, é certo e seguro que o brasileiro não
dispensa os terreiros ou as igrejas.
À entrada de uma destas, que por acaso está
no centro do Rio de Janeiro, descobri uma mesa com papelinhos onde se lia, impressa,
a “oração das treze almas” (Peço-vos que atendei a meus pedidos...” “...cortai
as forças dos meus inimigos, minhas treze almas, benditas, sabidas e
entendidas)” e, por cima dela, este luminoso apelo aos “Neuróticos anônimos”:
“Se você sofre de depressão, angústia, medo, ansiedade, insônia, solidão e
outras emoções tortuosas, procure nossa ajuda, gratuita”.
Dias antes, ao passar diante da delegacia da
Polícia do Catete, eu ouvira uma mulher acompanhada de uma menina de uns oito
anos, pedir aos “policiais” que se juntavam à porta para irem prender o seu
marido. E como nenhum se mexia, jurou que pediria o apoio de “Escadinha”, o
célebre traficante e “herói” de favela. E prometeu: ainda havia de aparecer na
delegacia com o marido acorrentado, e com “duas bolinhas dependuradas no
pescoço”.
O “Escadinha” estava preso. Para o libertarem
cerca de 30 homens tinham invadido uma estação elétrica e cortado a luz durante
alguns minutos – sem sucesso. (Mais tarde, menos sucesso teriam ainda os que
pretenderam libertá-lo com a ajuda de um helicóptero). Por esses dias, o Estado
de São Paulo dava a “Cidade Maravilhosa” como “pior do que a Chicago dos anos
20”. Mas o Jornal do Brasil ia mais longe: “O Brasil inteiro está vivendo hoje
o clima de Chicago nos anos 30”.
Uma noite, eu viajava num autocarro
superlotado. Ao passar pelo Aterro do Flamengo, uma jovem desatou aos gritos.
Imaginei um assalto, mais plausível no silêncio que de repente envolveu os
enlatados. Ninguém se mexeu, ninguém perguntou nada. Só a jovem e um companheiro
correram, imparáveis, para a porta. Vi-os saltar e dirigir-se para uma
cabina da Polícia; e a Polícia apareceria na paragem seguinte.
Lembrei-me então de outra viagem de
autocarro, feita dias antes desde o Morumbi até ao centro de São Paulo. Era o
regresso de um frustrante “joguinho horrível” (disse o Jornal da Tarde, e foi
verdade) entre o Palmeiras e o São Paulo, terminado com um empate a zero, quem
sabe se combinado. Durante mais de uma hora, só se ouviram no “ônibus”
palavrões e insultos, dirigidos pelas janelas a quantos a pé ou de carro
passassem por perto. Nunca me fora dado viajar num autocarro tão freudiano.
Bem mais empolgante do que o “derby” paulista
foi o “Fla-Flu” do Maracanã, em que Zico luziu. Mas lá do alto das
arquibancadas o jogo não me interessou mais do que as torcidas, que mutuamente
se denegriam ou depreciavam, e às equipas, à base de sonoros palavrões ou de
“slogans” obscenos, que nem com as estrelinhas do Jornal do Brasil convirá
reproduzir. A certa altura Marquinhos, que já havia marcado um golo, agrediu um
adversário. Isso lhe valeu o cartão vermelho – e o aplauso da sua torcida.
“O Brasil é uma sociedade interessante”,
defende Roberto DaMatta. Quem o duvida? Nele a violência e o crime convivem com
o riso e a gentileza, tal como a miséria extrema está às portas da abundância.
Um dia descia eu do belo “hotel” de Santa Tereza em que amigos me hospedavam
quando uma jovem senhora parou o carro para me dar uma boleia, como se o morro
fosse uma aldeia, e o desconhecido um companheiro de infância. E numa noite do
Recife passei de um fascinante espetáculo popular de danças nordestinas para um
pretensioso e dispendioso “show” num salão recém-inaugurado, com mulatas de
“oba, oba” menos bonitas do que as que se viam pelas ruas, e com apresentadores
“cafonas” a condizer com cenários “Kitsch”.
Cada vez que chego ao Brasil sou surpreendido
com novas imagens e metáforas que se tornaram correntes. Há anos, os media
falavam em políticos biônicos (não eleitos). Desta vez falavam muito em gatilho
salarial, a disparar segundo certas regras, e em marajás, funcionários que
fizeram fortunas à custa de alguns discretos roubos ou rombos nos cofres do
Estado. Mas também gostavam de falar no besteirol geral; e alguns referiam-se
com muita ternura às camisinhas, que os brasileiros usam lá onde os portugueses
usam mais correntemente "preservativos". (Aliás a nossa
"camisola" é quase sempre a "camiseta" deles, e a
"camisola" deles é quase sempre a nossa "camisa de
dormir").
Suponho que Antônio Houaiss não esquecerá
estas acepções no dicionário de 300 mil palavras que está a preparar com uma
equipe de 12 pessoas e um computador. E suponho que nem a este passará
despercebido o fio dental, embora talvez não se atreva a reproduzir a sua
imagem – que é a de um finíssimo biquíni, muito usado em Ipanema e Leblon.
Perguntou-me Antônio Houaiss se ainda se
falava em Portugal no acordo ortográfico que se impõe com urgência, e que não
há muito mobilizava exércitos nacionais. Que ideia – respondi. Em Portugal o que
às vezes se faz de importante é não deixar fazer, ou então adiar, sobretudo o
inadiável.
Graças à Televisão (privada) todos os adultos
do Brasil viam muitos anúncios e telenovelas; e toda as crianças do Brasil imitavam
a chamada ex-namorada do Pelé – viam e ouviam a Xuxa, dançavam como a Xuxa. Até
ao dia em que ficaram a chuchar, no dedo.
E uma bela manhã Celso Cunha – agora acadêmico,
eleito em luta com "um homem do presidente" – informou-me da morte
algo inesperada da relativamente jovem escritora, a quem por sinal eu mandara
na véspera um ramo de flores. Tinha encontro marcado com o pai dela para daí a pouco; mas, perante a notícia, só me competia esquecê-lo. Outro encontro, não programado, e breve, teríamos de tarde, antes do enterro, quando ele interrompeu o seu silêncio para me falar da alegria que a filha sentira ao receber as minhas flores, e da emoção com que ainda despetalara duas, pouco antes de adormecer para sempre. E seriam essas também as últimas palavras que ouviria desse homem genial com quem noutros tempos conversava no seu escritório por noites longas, inesquecíveis, inclusive sobre a filha única, que ele tanto amava, e que então vivia em Buenos Aires.
A filha chamava-se Maria Julieta. E o pai chamava-se Carlos Drummond de Andrade. Morreria doze dias depois.
A filha chamava-se Maria Julieta. E o pai chamava-se Carlos Drummond de Andrade. Morreria doze dias depois.