Voltei.
Sei que
nada se perde, mas ainda há muito para se saber diante deste longe/perto, aqui,
na praça, em frente aonde construí minha casa, como um joão-de-barro, de mãos
dadas com a concavidade da sombra de uma árvore antes do amanhecer do dia para
começar a faina do eito.
Se em
outros tempos Nelson Rodrigues já fora um despojado da vida, agora, então, ele
se mostra muito mais radical porque o seu tempo é o da ausência de tempo, não
mais o da falta, de outros tempos, mas o do excesso e, como uma brisa, agora com
muito mais disponibilidade para saborear os ossos do seu ofício de repórter, o
que ele sempre foi e como gostava de sê-lo, assistindo, sem queixa, os
espetáculos da rua que, para a sua alegria, não cansam de se
repetir. Estava com uma pétala de punhal nas mãos, ansioso para sair da
pasmaceira em que vivia.
Da minha
varanda, eu não tinha dúvidas de que a posição dele no tronco da arvore, além
de poder vislumbrar o vasto céu, de controlar a entrada e saída das aves nas
árvores e o rumor suave da respiração de cada uma delas, a sua posição, ainda
que de cócoras, era mais que perfeita, democrática. Se poderia dizer
privilegiada para o exercício do que ele mais gostava de fazer: o da
observação. Logo entrariam em cena todos os seus sentidos, na expectativa do advir
e uma solidariedade amorosa. Expectante, aguardava. Como um degredado. E, na
leve espessura do galho, estava intocável. E também invisível para alguns, pois
nem todos têm a mesma mediunidade.
O velho
repórter ainda sabia das coisas. E como as vozes femininas estavam cada vez
mais próximas, como se estivesse diante de um soldado, sacramentei que ele
estava ali para saborear aquelas presenças.
Trajava-se
de moderno, antenado e, ainda por cima, de laptop. Grande novidade para quem se
habituara a escrever numa Remington, com dois dedos sobre o xadrez das teclas,
catando milho, durante várias décadas, mas agora o fazia no laptop com uma
desenvoltura fora do comum para quem era dos tempos de antanho como ele,
batendo as mãos contra o peito, descontraidamente, gostava de se proclamar para
os basbaques dos seus focas.
Bem
equilibrado no tronco da árvore, acocorado, como já o disse, ele já começava a
escrever as primeiras linhas de mais um episódio de A vida como ela
é ou seria uma crônica para a sua coluna das segundas, depois da
rodada do final de semana, cujo título era Meu personagem da semana?
O leitor
pode respirar nostálgico, mas não creio que o será pelo futebol de Beatriz que
mataremos saudades da pena de Nelson, embora, pelo que se ouvia da altercação com
a outra moça, ela batesse um bolão. Era um Pelé (ou uma Pelé) de saia entre quatro paredes.
Pelo
brilho do olhar de Nelson, ele estava certo de que o alimento não está, só, em
cada um, por isso levaria uma página inesquecível para o outro lado onde
passava agora os seus dias, quase sempre distraindo, com as suas histórias, com
aqueles que se derramavam na roda dos bajuladores, quando ele me descobriu na
varanda tomando aquela lufada de ar.
Estou
certo de que, a distância, parecia me dizer "A gente nunca tem certeza de
nada na vida, basta olhar a história dessa moça". Mas eu diria que ele
olhou para cima para ver o que estava acontecendo e, em ato contínuo, fez um
aceno discreto para mim. Me senti lisonjeado com o gesto. Parecia, enquanto
lutava por aquela madrugada, ter-me reconhecido. E parecia dizer-me ainda
"é assim que nascem as minhas crônicas, não perco nada dessa vida que me
dê uma boa história, mesmo estando no lugar onde estou", e riu a bandeiras
despregadas, como se fazia no seu tempo.
Se você
meu caro leitor, ainda "quer viver, para ver, vai ter que esperar por outro dia",
pois, como disse Cassiano Ricardo, "foi para isto que se inventou o adiamento". Portanto, essa história
continua. É só esperar o próximo capítulo.
(José
Carlos Sant’Anna)
Ora viva, José Carlos!
ResponderExcluirHá que tempos não lograva subir ao galho da tua árvore. Magnífica como sempre, seja inverno ou verão. Para tanto desfrutar basta nada fazer: é só seguir as linhas da imaginação.
As moças mesmo a chegar... que bela vista nos foste arranjar, uma não sei a outra Beatriz. Foi por um triz que não desci do sonho ao chão raso da realidade.
Abraço.
este teu modo de me entreter, estou por um triz....
ResponderExcluirbeijo,beijo
...e acompanhada de Chopin (sempre fantástico com seus Nocturnos), é lógico que retornarei, preciso ver onde vai dar isso, rss. E gostei de recordar Nelson Rodrigues com suas manias e sua escrita genial. Você diz para seguirmos...seguiremos!
ResponderExcluirBjs, boa semana!
Não há nada mais agradável, quando estamos a ler um texto, do que quase conseguir visualizar o que se está a ler. E isso acontece-me com o que você escreve, meu caro amigo. Você é um homem da "grande prosa".
ResponderExcluirUma boa semana.
Um beijp
uma maneira sui-generis de escrever que me deixa maravilhada...
ResponderExcluirclaro que voltarei para seguir as suas palavras
bom final de semana.
beijinhos
:)
(aprendo sempre tanto quando aqui venho ... )
Já ansiando pelo próximo capítulo...
ResponderExcluirComo sempre, um texto admirável, com uma riqueza de conteúdo... que facilmente nos faz aderir à pele do personagem, como um todo... melhor a compreendendo... e interiorizando!...
Um trabalho de mestre, José Carlos!
Deixando um beijinho e votos de um excelente fim de semana!
Neste momento, com uma pessoa de família meio adoentada... tentarei apreciar os seus restantes posts, que me escaparam mais recentemente, tão breve quanto possível...
Ana
Não seria melhor ter publicado toda a história?
ResponderExcluirAssim vamos ficando suspensos, tal como o nosso Nelson Rodrigues, ainda que sem o risco de queda do galho...
Fico à espera do resto desta magnífica narrativa/história.
Caro José Carlos, um bom fim de semana.
Abraço.
Nada como bem observar para bem escrever!
ResponderExcluir(Voltarei para ler o seguinte.)
Boa semana!
Excelente, você realmente é uma artesão das palavras; consegue colocar sentimentos, sensações, sempre de maneira maravilhosa.
ResponderExcluirA música está perfeita.
Continuarei te lendo...
Boa semana!
Abraços!
Que construção poética tão perfeita para o escritor
ResponderExcluirNelson Rodrigues: "Estava com uma pétala de punhal
nas mãos, ansioso para sair das pasmaceira em que
vivia."
Tua criação literária admirável, amigo.
Continua, viu!...
Beijo.