Estava
certo de que ouvira o lado mais ocidental de Nelson Rodrigues dizer que, uma
vez escolhido um caminho, nunca deveríamos estorvá-lo sem olhar para as estrelas, sob pena de... Não, não
importa. Portanto, ali estaria sossegado e com o coração leve, percutindo de vez em quando o pé no tronco que o sustentava. Levíssimo. E como um
profeta ou um Camões redivivo recitou do seu altar o que parecia um poema:
– Se
é que somos feitos de impossíveis sins, não me consinta o amor tanta alegria,
pois vejo que a noite promete destruir os véus da incerteza, pois percebo
que são forças maiores que arrastaram este homem que já foi de carne osso até
aqui. – E riu muito.
Enquanto
da minha varanda, metade de mim era silêncio, a outra metade era pura
expectativa. Sim, eu estava também bem curioso e tinha abandonado o livro que
apanhara ao acaso na prateleira da estante. E me acomodei como se estivesse numa
privilegiada poltrona para acompanhar o desenlace da história. Porque
estava claro que havia no ar uma rusga amorosa entre as duas moças, só ainda
não tínhamos descoberto qual o real motivo da desavença. Das imprecações de uma contra a
outra. O fato é que elas subiam olimpicamente a ladeira, discutindo. É verdade
que se ouvia apenas a voz de Beatriz. Mas elas discutiam entre si, disso já
não se tinha dúvidas. Brigavam e ponto final. Mas cada pessoa tem o seu
modo de brigar. Como a vida não tem roteiros, era a outra que se lastimava em
voz alta, e Beatriz, como uma cândida pomba, buscava a conciliação entre um
impropério e outro. Havia ainda uma réstia de pomba nela. Ou um noturno anjo branco?. Ela se revelava
velando aquele amor, embora tivesse pisado em falso.
E, lá
do alto, prosseguia o Nelson Rodrigues querendo ensinar de modo inflexível,
para mim, o "óbvio ululante":
– Como
eu sei que a vida não é um lago, assim, eu ia passando, bem distraído, como
quem não queria nada, quando vi aquela moça lacrimosa, aí eu pensei "aí
tem angu".
E
acrescentou com sua aura esplendorosa:
– Ou
debaixo desse angu tem carne.
E com
um ar irônico arrematava, mas sem passar a régua:
– Como
eu poderia perder esse drama ao raiar de um novo dia?
De
repente, outras janelas, com rufos de timbales, se abriram. Foi um zum-zum-zum
que se espalhou pelo paliteiro do Caminho das Árvores. Acho que o Nelson pensou
que estivesse num Maracanã miniaturizado com a vida fremindo no cu da madrugada.
E ele parecia ter orgasmos com o drama que se representava na praça e com os
rostos estremunhados que buscavam o melhor ângulo para acompanhar as duas
moças: uma, que não poupava a histeria, e a outra, que tudo fazia para que a
primeira se acalmasse, mostrando-lhe discretamente as janelas se abrindo, e os sussurros, por enquanto, ainda pequenos.
Por que
a outra gritava tanto se Beatriz estava ao seu lado? A vida é mesmo um encanto, não se pode dizer o contrário.
Tanto barulho e os pássaros, retardatários, voltando fagueiros a se acomodar nos seus galhos, indiferentes àquelas rugas esquisitas, esperando que a vida seguisse o seu curso
e, também, com aquele estranho animal refestelado na frondosa árvore.
Quase
não se ouvia a voz da outra pomba. Apenas Isabel arrulhava. Por isso, o que a
pomba dizia era apenas imaginado pelas circunstâncias ou por uma lógica
perversa dos que estavam acomodados nos camarotes das suas janelas e varandas.
Pelas circunstâncias era
mais ou menos isto que se imaginava. O diálogo possível, porém imaginado:
– Vamos
resolver isso em casa, baixinha, debaixo dos lençóis.
Ou,
então, com um pouco mais de imaginação:
– Vem,
amor, é em ti, amada, que meus sonhos repousam. "... embaixo dos caracóis
dos seus cabelos..."
Ou
provocadora, fazia uma careta, dizendo:
– “Ainda
tenho muito cafuné para te fazer, minha menina, só você que não está vendo...”
ou “que deixasse de ser boba”, “que não estragasse tudo daquela forma”, que
“não pagasse aquele mico”, que “depois do banho estaria limpa, asseada”,
Ou
ainda se lembrando da festa junina quando se conheceram e adotaram uma cama em
comum
– “Olha
pro céu, meu amor..."
Enquanto
isto, dezenas de curiosos nas janelas por detrás das cortinas se portavam como
autênticos Big Brothers.
Nada
adiantava. A histérica estancava os gritos e, em seguida, eles estouravam numa
volúpia ainda maior. Parecia irremediável a situação de Beatriz, parecia que
ficaria sozinha. Ficaria sem as duas. Não havia mais possibilidade para
conciliação. Não tinha escolha? É o que se perguntava quando havia um silêncio
entre o choro e os impropérios da outra.
Esta
será sempre a outra, a filial, ainda que se visse como a matriz, porque ninguém
ouviu Beatriz chamar-lhe pelo nome uma única vez. Assim...
É que a
moça histérica já tinha subido à rua principal que levava à praça aos gritos e
aos soluços, pois não se conformava que “a sua parceira tivesse enfiado outra
na sua cama”, era o que agora se ouvia nitidamente, porque repetia aos gritos
para Beatriz.
Foi
assim que ficamos conhecendo a outra moça e que, depois de oito anos de
exclusividade, a outra, não sabemos como, em plena madrugada, descobriu o conluio
amoroso. Não se tem certeza, mas, parece, que a "outra" flagrou as
duas no rala e rola. E eram todas as amigas, senão como explicar a chama dessa
vela que a outra segurava?
Quando
tudo parecia chegar ao fim sem que conhecêssemos a versão de Beatriz e, a distância, elas pareciam dispostas ao armistício, à reconciliação, a vítima
irrompia em novos gritos e lágrimas, então, um gaiato, encoberto pelas cortinas
da sua janela, gritou:
– Você
não tem relógio, não, sua desocupada? Por que não vai embora e deixa a
gente dormir?
Quando
outro gaiato assobiou e já ensaiava nova frase de efeito, um táxi encostou
junto ao meio-fio da praça, e se ouviu o taxista dirigir-se às moças perguntando-lhes com uma voz grave:
– Vocês
pediram um táxi à central?
Beatriz
não respondeu. Abriu a porta do táxi e, sem que a outra esperasse, puxou-a para
si, segurando-a pelos quadris, e enfiou-lhe a língua num beijo que a calou de
vez.
Nelson Rodrigues, percebendo que não tinha mais nada a fazer
ali, desceu cuidadosamente da árvore, pois não poderia voltar machucado para o
andar superior, onde deveria estar descansando, olhou para cima e disse
numa voz plácida para que todos ouvissem:
– É isso... A vida como ela é, cara!"...
(José Carlos Sant Anna)
Caro José Carlos, minha simpatia pelo seu conto começou com a menção ao nosso Nelson Rodrigues, essa referência e orgulho da nossa literatura e do nosso teatro brasileiro. Comprei todos os livros do N. R. que encontrei, e sempre estou atento para o que possa estar escondido em alguma prateleira das minhas livrarias. Sempre percebo a presença desse mestre do jornalismo, da crônica, do conto, do teatro, onde quer que esteja e tenha gente por perto.
ResponderExcluirParabéns pelo excelente conto, que de certa forma homenageia Nelson Rodrigues, já que você segue um pouco a linha do mestre, até na sua última frase. Gostei muito.
Um forte abraço.
Pedro
O dom de saber contar! Meus parabéns!
ResponderExcluirBoa semana, amigo.
Abraço.
rsss, mas que rolo, acompanhado de histerismo, não tenho dúvida que contaste a 'vida como ela é'...crua, sem ginga. E senti uma nesga de Ferreira Gullar quando dizes... "metade de mim era silêncio, a outra metade era pura expectativa." Um pouco diferente, mas sem querer lembrei dele.
ResponderExcluirMuito bom, José Carlos, se for pra mostrar rolo, que se mostre!
Beijo, uma ótima semana.
Você é um excelente contador de histórias José Carlos...
ResponderExcluirConstruíste lindamente cada parte dessa história.
Nelson Rodrigues do andar de cima, com certeza se sentiu honrado em participar de cada cena... Enquanto lia, me vi ao lado da tua varanda observando, “A vida como ela é". A história é muito boa.
Parabéns!
Boa semana!
Abraços...
"metade de mim era silêncio, a outra metade era pura expectativa". Foi o que me aconteceu quando comecei a lê-lo. É sempre um excelente narrador que nos leva a ver o que escreve. Adorei.
ResponderExcluirUma boa semana, meu Amigo.
Beijos.
gosto desta maneira de escrever
ResponderExcluirem que o final é completamente alucinante e fora das minhas cogitações
gostei muito!
beijinhos
:)
(obrigada pelas visitas aos meus espaços...)
e...
ResponderExcluiro amanhecer
traz novas cores
translúcidas...
(estar aqui
e te ler me traz
um orgulho sem fim...)
contém 1 beijo
Ótimo conto... excelente narrativa... superou as expectativas...
ResponderExcluirBeijos...
Um texto extremamente interessante. Gostei.
ResponderExcluirJosé Carlos
ResponderExcluiruma boa semana com muita inspiração.
beijinhos
:)
Virei ver.
ResponderExcluirCaro José Carlos,
ResponderExcluir"A vida como ela é", mas numa literatura de arte
desta, até o Nelson Rodrigues muda a frase para:
- a vida é uma janela de cores - as palavras sem
bastidores, trazendo para o palco-vida, os sentires
na nudez humana que veste a narrativa impecável do
escritor José Carlos, a desenhar sem hipocrisia
na companhia "mediúnica" do Nelson Rodrigues;
"O anjo pornográfico"...rss
Parabéns pelos três capítulos (continua, o Nelson
Rodrigues está a reclamar da interrupção...rss)!
Adorei!!
Beijo.
Uma narrativa extraordinária, com a habitual riqueza de detalhes e emoções... e que nos deixa na expectativa... até ao fim!... Como disse a Fá, mais acima... o verdadeiro dom de saber contar!...
ResponderExcluirParabéns pelo talento, José Carlos!
Um grande abraço!
Ana