Um espadachim. Era como
ele estava se sentindo depois da breve escaramuça na antessala da academia de
ginástica com um oponente. "Pode isso, Arnaldo?". Como o mundo é o que
corre lá fora, Carlos, para não ficar só, abandonou a esteira em que queimava
uma gordurinha, e pernas, para que eu as quero?
Este era o caminho para
entender as razões do que estava àquela altura acontecendo consigo mesmo. Ou
como um sim inesperado que a vida parecia oferecer-lhe, caminhava se
interrogando, intrigado, por que, depois que deixou a ótica no final da tarde
do último sábado, não parou de pensar na consultora que o atendera? Que bela
morena! Morenaço! E como ela não revelara, nem um pouco, uma alma pequena, achou que valeria a pena o
derrame de neurônios que se perdia no rio da sua libido. Tudo estava em ordem em sua vida até aquele momento, mas, de repente, achou que faltava ela no seu caminho.
Logo depois que deixou a
loja, Carlos, sereno, seguiu para o Porto da Barra para montar guarda. Lá,
tomando um chope aguado, cheirando a maresia, e com o cocô de cachorro
impregnado nas calçadas exalando pelas portas a dentro dos bares, imaginou que
talvez ele não soubesse que o centro do mundo é um ponto escuro, que não se
tange assim como não se quer nada ou com poemas que se digam inconfessáveis. Ou
mesmo não soubesse ainda que o segredo da liberdade é saber esquecer antes que
ela se torne um amor cruel, tangida por um condutor de bondes.
Sôfrego, sem que as
sombras o iludissem, ficou murmurando depois algo contra si mesmo. E logo, enviesadamente,
por saber que o mundo não é mundo, mergulhou num silêncio atonal recolhendo
este segredo que não sabia quando desfiaria e para quem o desfiaria, e que, se
possível, ainda desfiaria este rosário naquela noite cujos primeiros acordes já se
fazia ouvir com o pôr-do-sol.
Saiu da loja de braços
dados com uma novela e a tranquilidade de sua alma acreditando que tinha feito
o melhor ao trocar também a armação dos óculos. E começou ali mesmo a
reconstituir o passo a passo da sua conversa com a consultora de um pouco menos
de duas horas, mas, ao que parece, ele tinha deixado escrito em sua pele seja
bem-vinda. E dizia para si mesmo "Venha, mas venha leve para que eu não
acabe os meus dias em silêncio, porque a primeira impressão não é a que fica.
Isto é um engodo. Venha, sem pressa e com vontade de sonhar, passear pelas ruas
de mim mesmo, sem gatos a espreitá-la. Venha que, quando a festa estiver no
ápice, eu reparto as cordas da minha lira com você".
Lembrou-se que, ao assomar
à porta, ela se levantou da cadeira e se dirigiu à entrada da loja encurtando a
distância que a separava dele e, sem afastar o olhar um milímetro, ela lhe
estendeu as mãos, perguntando-lhe:
– Posso ajudá-lo?
– Queria falar com
Cristina?
– É aquela ali. Ela está
ocupada no momento – disse-lhe apontando para uma moça de cabelos compridos,
que mostrava na vitrine algumas armações para um cliente que entrara na loja um
pouco antes de Carlos.
– E o Procópio?
– É o gerente da loja. É
aquele senhor, na outra extremidade, atendendo aquelas duas moças – disse-lhe,
mostrando um senhor parrudinho de cabelos grisalhos, de mais ou menos 50 anos, que
abriu um sorriso carregado de simpatia da sua mesa de trabalho, quando percebeu
que Carlos estava ali para falar com ele.
– Venha, sente-se
aqui – disse-lhe a consultora, puxando-o pelo braço com um jeito
sedutor. – Vamos conversar enquanto esperamos Procópio fechar o
contrato com as duas moças – acrescentou.
– Posso adiantar-lhe o que
me traz aqui, se você quiser! Como é mesmo o seu nome?
– Ana Flávia! Mas pode me
chamar de Ana!
– Com tanta simpatia
da sua parte, acho que não preciso esperar por Procópio – disse-lhe
piscando um olho e com o outro fixava a sombra bem delineada no seu rosto.
Ela fez de conta que não
entendeu o seu gesto, mas o recolheu com um sorriso ambíguo.
– Como o senhor vem
recomendado, podemos ir conversando, sim, mesmo sabendo que a palavra final
será dada pelo Procópio. Ele fará o que não poderei fazê-lo!
Ele meteu a mão no bolso
apanhando a receita dos óculos, colocando-a sobre a mesa de trabalho de Ana
Flávia. Ela a tomou em suas mãos para conferir a quanto ia o astigmatismo de
Carlos, que se preocupava em observar os detalhes do seu rosto, da sua pele.
Até que ela se levantou para apanhar as armações, então, ele pode acompanhar o
movimento ritmado das suas ancas. Suspirou duas vezes e passou a mão no rosto
para limpar o suor que deixava nele um brilho excessivo.
O estilo pode muitas vezes
ser um fake na vida de cada um. E, por favor, nada de truques
porque a vida não aceita rasuras no seu percurso infindável, é o que ele diz a
si mesmo antes de voltar a olhar a fração de mar que se descortinava na solidão
da sua mesa e, em seguida, chamou o garçom e pediu mais um chope.
Depois que ele se afastou,
Carlos se lembrou rapidamente do garçom do Café com Letras, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, quando ele pegou a
sua tulipa ainda cheia de chope e fingiu que estava levando-a de volta para a
cozinha. Ao perceber a sua reação, disse-lhe com um sorriso largo de
domador:
– Me acompanhe. Já
consegui uma mesa lá dentro. Vai começar a sessão de jazz. E o senhor só vai me
agradecer esta gentileza porque são músicos de uma elegância que as notas parecem em êxtase. – E sorriu.
Carlos não se dá por
vencido e volta a se perguntar por que não parou de pensar na consultora. Ouve
os acordes iniciais do concerto e os confunde com a noite de jazz do Café com
Letras e outro baile interminável mais distante no tempo. E como se a
consultora estivesse perto diz-lhe que queria lhe mostrar sua outra face, a
mais sisuda, e apagar a paródica revelada no sábado à tarde.
Às dez da noite, Carlos, depois de cinco canecas de chope, era um espantalho de homem, subiu para o restaurante porque ela não apareceu para jantar como ficara
tacitamente combinado. Adeus, pressurosos ventos das sonhadas manhãs ensolaradas.
Pouco sabemos dos rios que nos afogam. Ainda hoje Carlos não deixa de pensar na consultora depois do encontro na loja na tarde daquele sábado. Foi um sobrinho
que pegou seus óculos novos.