Parece
que tudo conspira na plenitude da penumbra, mas ainda não há história. E haverá? As pretéritas não se apagaram. E não morrerão. Agora só um ardor na pele a perseguir
um grande sonho, esquecendo as folhas murchas e os prédios antigos, que nos corroem a alma em segredo. De que são
feitos os homens? O que você ainda não sabe, é que esperei por este momento
durante muitos anos. Pode se aproximar mais um pouco, assim não preciso
levantar a voz para lhe contar essa história. É bem curta. E, por favor, não me
julgue. Pode recusar também as minhas mãos vazias, fique à vontade. Embora
curta, se estiver maçante, pode pedir licença e retirar-se. “Aceita uma taça de
vinho? Trouxe essa garrafa de uma bodega lá dos pampas”. Comprei-a ao deus
dará, depois de dois aperitivos para o jantar. Agora, para ser exato e não perder o fio da meada, em nenhum
momento tive a noção do peso e das medidas do tronco mais silencioso do apartamento
dela porque foi tudo tão rápido. Eu tinha saído para comprar um par de meias. Imagine!
Por algum motivo quis sair de casa para arejar os pensamentos, levado por um
vento cheio de fantasia. Assim, fui pelo caminho pensando nas minhas vivências, mas quase sempre se intrometiam outras estórias, que demandavam
um tempo maior de deambulação. E eu as deixava no incessante retorno. E quando caminho à toa, pareço um planador pairando no ar, traçando grandes círculos no
azul do firmamento. É o que mais eu gosto de fazer nessas horas numa pulsação serena,
aparentemente intangível, enquanto caminho pelas ruas. Aí me pego lembrando ou
inventando estórias que ficam sempre inconclusas. Só pego o carro quando é impensável a caminhada. Ah! tenho um arraigado hábito de recomeçar onde
interrompera os pensamentos sobre as minhas vivências. Ainda que pachorrentas,
são águas que nunca se cansaram de mim porque sempre soube que tudo volta. É assim
que escrevo diariamente a minha história, com palavras silenciosas apenas
roídas pelo vento. Misturando o perto e o longínquo, enquanto as pernas se
alongam sobre as pedras portuguesas que abundam também na minha cidade. Como os
caquis em São Paulo. Abundam. Tudo que eu buscara era um par de meias, era o que
lhe dizia. De repente, eu ouvi um leve marulho às minhas costas. “Por que não
leva o par de meias? Elas combinam com a sua meia idade? Da última vez que o vi,
você usava uma bengala, eu o conheço bem, sei que não tem idade para isso! Puro charme, não é
mesmo?” “Você anda me seguindo?” “Me observando?” Então, só então, levanto os
olhos para saber quem é a pessoa que fala comigo com tanta intimidade! Nina! Já
não esperava encontrá-la. Faz tanto tempo. Marina alcovitou e lá fomos para o
cinema juntos. Foi a última vez? Saímos da loja. E lá vou eu caminhando ao lado
dela pela calçada, dizendo-lhe que a bengala ficou à margem de um lago,
esquecida. Nunca precisei dela, era um arrimo fictício, um fingimento poético, metafórico. Aquele
amigo sacou a história da bengala, disse-lhe, como se ela o conhecesse, como se fosse um amigo comum da idade da emoção, como foi a nossa alcoviteira na época. Atravesso
agora uma passagem subterrânea, e as cortinas se abrem em par pela avenida novamente.
E uma torrente passando. Quem não entendia nada àquela altura, era eu, com a voz da noite me dizendo baixinho: "esquece... esquece". Passei
outra vez pelas carroças, e não encontrei Nina. A dança das quadrilhas, o
forró, a canjica, o bolo de aipim. O licor. Minha avó cheirando minha boca, eu me afastando, rindo e ela me dizendo "você bebeu, não foi, sem-vergonha!". E Nina
não vinha. Os paralelepípedos exorbitando pelo
caminho de areia, e o par de meias, ah! o par de meias nas mãos. Puxando a
gaveta da cabeceira da cama, ela pega uma barrinha de chocolate, gira o tronco na
minha direção e, com os lábios sangrando cacau, oferece-me um pedaço do
chocolate, me lambuzando. Eu esperei por este momento durante anos.
(José Carlos Sant Anna)
(José Carlos Sant Anna)