Meu Deus do céu! Será um sonho diurno ou noturno?
De
repente, vejo como o ônibus estaca na beira da calçada. Olho para um lado, depois para o outro e descubro que somente eu desço naquela paragem. Decido entrar num quiosque de batatas fritas quando o telefone móvel toca. São oito
horas da noite. Mal tenho tempo de fazer o meu pedido ao balconista porque já
me enternecia com uma mãe puxando duas crianças por uma das mãos, enquanto a
outra era estendida à caridade naquela hora da noite. Ajeitei a mochila nos
ombros, abri o zíper, enfiei a mão lá dentro e puxei o telefone, acompanhando o
olhar súplice da mãe que esperava que eu tirasse uma cédula da carteira para
ajudá-la. Pelo visor identifiquei a chamada, enquanto o ônibus permanecia
estacionado no mesmo lugar.
—
E aí, Tio, tudo bem? Está resistindo bem ao inverno que não cessa a essa altura
do ano? — disse-lhe com um ar sério porque ele acreditava no sobrinho e
piamente que ainda se encontrava do outro lado do Atlântico.
—
Filho, ainda está bem frio, aqui! A neve não para de cair, e os alemães também
não resistem às nossas baionetas...
Era
o queridíssimo Tio Hermógenes, também conhecido pela alcunha de Tio Rapadura,
membro nato da família, e mais respeitado ainda porque pertenceu à FEB, Força
expedicionária Brasileira. Estava ligando para desejar-me Boas Festas, em meio
ao calor que nos atormenta no final do ano, quando começa o verão oficialmente
aqui nos trópicos.
Hermógenes
era o nome de batismo. Era um bom moço, sedutor. Elegante, no vestir e no falar.
Logo as meninas descobriam que ali estava um homem e ficavam olhando para
dentro dele, sem saberem o que lhe dizer. Uma de suas namoradas, a Teca, a
eleita, por ele e pela família, disse que Rapadura faria muito sucesso lá
fora.
Diante
do estranhamento dos familiares ao ouvir aquela expressão, Rapadura, inabitual para apelidar alguém, ela saiu com
essa explicação bizarra, mas que fazia muito sentido:
—
Já repararam que ele tem a cor da rapadura e se derrete com facilidade na boca
de cada uma de nós!
Rimos
todos antes que o ônibus voltasse a andar. O certo é que o apelido pegou. Ninguém o chama de outro modo. Assim Tio Hermógenes conquistou
esse carinhoso nome de guerra como se logra um lugar no ônibus para sentar.
E roda a sua vida com este nome desde que foi recrutado para o front pelo
Exército brasileiro. Para os que não o conhecem ainda, é um sobrevivente...
Bem,
não vou lhes dizer que não sabia que estávamos às vésperas do Natal, estaria
mentindo se o fizesse, porque os reclames dos festejos natalinos nos consomem
com tanta antecedência que não há a menor possibilidade de qualquer pessoa se
mostrar indiferente a tais apelos, que circulam pelo mundo afora, anunciando o
nascimento de Jesus, mas que eu ando meio desligado, ah, isso é verdade. Eu
tinha acabado de perder o meu emprego e ninguém sabia na família, portanto, estou me resguardando das intempéries, que não são poucas no país em que vivemos
hoje, de tão poucas oportunidades.
Mas
isso eu não contei logo para o Tio Rapadura porque não sabia como ele reagiria
à notícia. E dos seus sobrinhos, é bom que você saiba, sou o seu xodó.
Com
a voz roufenha, desejou-me “Boas Festas” e me perguntou o que eu andava
fazendo, como se adivinhasse o que tinha acontecido. Tomei um susto e dei-lhe
uma resposta evasiva. Ele percebeu e me disse que eu não precisava fingir com
ele porque eu sabia o que ele tinha enfrentado em Monte Castelo, tinha lutado
contra os alemães, bem mais difíceis de lidar, além do frio, do que qualquer
adversidade que eu estivesse enfrentando.
— Que ele estava me vendo através da vidraça nua da vida — filosofou.
— Que ele estava me vendo através da vidraça nua da vida — filosofou.
Disse-me
ainda que, embora estivesse muito cansado, de modo razoavelmente decente
suspeitava que eu estivesse mentindo para ele, seu tio. Disse-lhe então de modo
eloquente que parasse de suspeitar da minha vida, que não havia razão para
duvidar de mim.
— Por
que eu mentiria para o senhor, Tio?
Redarguiu
dizendo-me que tinha alguma coisa errada comigo pelo tom da minha voz, porque ele estava me vendo muito fechado, ele percebia. Disse-lhe que estava era muito cansado, que não
estava fingindo, que estava tudo bem, tinha acabado de descer do ônibus e
estava parado num quiosque de batatas fritas, feliz da vida. Que me desse um
tempo, para pegar minha porção de fritas e uma cerveja. Ele perguntou se eu
iria para o jantar da família, no domingo. Disse-lhe que nunca tinha faltado e
que se eu pudesse levaria um casaco de couro novinho em folha para ele.
Deu
um sorriso bonachão do outro lado, dizendo-me que não precisava se preocupar,
porque ele sabia que eu não podia fazê-lo...
—
Meu sobrinho, um passarinho me contou... — E interrompeu a frase no meio.
Olhando
fixamente para a mãe puxando os dois filhos pela mão, eu, desta vez, não tive
coragem de retrucar nada ao Tio. E sem deixar de me lembrar de Joracy Camargo, o dramaturgo da peça Deus lhe pague, aproveito e estendo-lhe uma cédula de dez reais. Para agradecer-me, aquela senhora quase beijou a minha mão.
Tio
Rapadura sofreu muito na guerra e tinha uns surtos. Vivia metido num casaco de
couro qualquer que fosse a estação do ano. E eu não preciso dizer-lhe que só temos
uma estação, o verão. É o calor o ano inteiro e, nessa época do ano, não há
quem suporte 35o à
sombra.
Domingo
natalino. Tio Rapadura já acorda com o megafone na mão esquerda, vestido no seu
casaco de couro, e a baioneta. Chega à varanda e, depois de abri-la em par, leva o megafone à
boca, quando o telefone toca. Somente ele está acordado àquela hora da manhã.
Ele sabe que não pode voltar atrás, mas recua. Porque ele também sabe que de
vez em quando são necessárias provas para o fato de não conseguir suportar o
mundo que o rodeia. E depois de tanta festa parece ficar mais insuportável
ainda, por isso Tio Rapadura acordou mal-humorado na manhã do domingo, parecia
ainda no front em Monte Castelo. O que será desta vez? Inquieto, rodava pela
casa com o megafone na mão quando, surpreso com a estridência do ruído do
aparelho telefônico e, contrafeito, correu, esquivando-se entre os móveis,
para atendê-lo. Mas foi amistoso, até mesmo cordial, ao saber que a voz do
outro lado era a minha. Como assim? oh, Deus! O que há com
ela? Por que não ligou mais cedo? Por que essa história? O que
você está fazendo? Tantas perguntas ecoavam do lado de cá que logo percebi
que ele encetava propositalmente uma conversa sem pé nem cabeça, indiferente ao
que eu lhe tinha a dizer. Murmurei alguma coisa, depois fiquei em silêncio para
confundi-lo. E só depois de alguns minutos é que consegui expor a motivo da
minha ligação, embora, num curso da conversa, a meia voz, porque todos ainda
dormiam, eu percebesse que ele fingia que esperava a minha ligação há algum
tempo, como se soubesse que eu tinha aquele compromisso, como se soubesse do
que se tratava para que eu ligasse tão cedo. Chegou mesmo a me dizer que
gostaria de pular o domingo e, como não pudesse fazê-lo, talvez o fizesse se Teca estivesse por perto. Se eu não iria buscá-la...
Em
seguida, com o corpo curvado, caminha em direção à sua cadeira que está onde
sempre esteve. Ninguém se atreve a ocupá-la ainda que ele não esteja em casa.
Sentado, tranquilo, entre duas mulheres, que ofuscam o seu olhar, ele diz com
uma sabedoria ancestral que a vida das pessoas são como as histórias que
acontecem na tela grande do cinema, o diretor se encarrega de consumá-las de
tal modo que já vem tudo decidido de antemão, e é o expectador quem decide se
leva ou não leva aquela história para casa. É dele a escolha. E deixou que
os seus olhos viajassem pela estrada de ferro da memória até que o meio-dia se
aproximasse, perdendo-se em miudezas antes de sentar-se para o almoço dominical.
Em
casa, ligo a televisão e me deito no chão para ver o tempo passar, eu não tive
coragem de contar-lhe que tinha perdido o meu emprego. Na tela, vejo o ônibus
atravessando uma velha ponte que liga um bairro ao outro e, lá dentro, uma
Vênus dança para dois passageiros solitários.
(José
Carlos Sant Anna)
Verdade ou Ficção? a Vida imita a Literatura, não é verdade, meu caro José Carlos?
ResponderExcluirpercebo agora donde a elegância e tua "invejada" bengala! teu tio "Rapadura" é um "um velho senhor" daqueles que já se não fabricam!
és um excelente tecelão de histórias e enredos. mas isso tu sabes...
forte abraço
e os melhores votos de BOM ANO
Olá José Carlos!
ResponderExcluirVenho te desejar Feliz ano novo cheio de saúde, amor e paz.
E com muitas Vénus dançando para alegrar!
Beijos
O que se diz. O que se esconde. O que se pressente. Tudo num texto magnífico, meu Amigo.
ResponderExcluirQue o Novo Ano lhe traga o que mais quer.
Um beijo.
Tanto que se tenta esconder e tanto que se revela nas palavras não ditas oralmente mas que os silêncios não metem.
ResponderExcluirBoas travessias!
Beijos.
verdade ou mentira? que importa!
ResponderExcluira Vida imita a Literatura, não é, caro José Carlos?
sei agora da elegância e da tua "cobiçada" bengala. provem de teu Tio Rapadura, quero acreditar! - um velho Senhor de uma estirpe que vai rareando ...
tu és um fabuloso tecelão de "estórias" e enredos, além de exímio poeta. mas isso tu sabes!
caloroso abraço, meu amigo
tudo de bom para ti e aqueles que amas.
O esconde e o faz de conta, por vezes ajuda-nos a viver em mais harmonia.
ResponderExcluirUm texto brilhante e até senti simpatia pelo Rapadura!
Bom ano meu amigo e que a sua inspiração esteja sempre em alta.
Beijinhos
:)
Gostei do tiozão Rapadura que era afável com todos. Fui lendo e pensando que, quando criança, queria ter um apelido, achava tão meigo! Tão 'maneiro'! Mas nunca tive, então fica assim mesmo. Mais um belo conto a lá José Carlos.
ResponderExcluirQuerido amigo, um ano feliz pra você e sua família, com a paz que todos nós merecemos.
Um beijo.
Um conto tão humano, nas curvas da vida,
ResponderExcluircom o toque da arte literária do José
Carlos, que nos leva a percorrer o
caminho das palavras numa excelência
que dispensa ser focada, vai além da
excelência, regida por ti como uma
escultura dos significados e simbologia
nesta expressividade original ( eu deixo de ser original, quando repito tanto isso,
mas tu sabes que a originalidade é
raríssima...) que fica ecoando. ..
Senti a realidade do nosso Brasil neste
sangrar a vida no alto índice de
desempregados. ..
Escutar o Paulo Moura e Raphael Rabello,
somente te agradecer por este momento
aqui, meu caro amigo! ...
Para quem adora a literatura de alto
nível, é um privilégio as leituras
aqui, vii?...rss
Beijos, meu amigo.
Meu caro amigo José Carlos como sou um apreciador de contos, não poderia ter ficado indiferente ao seu "O casaco de Natal", excelente conto do qual destaco esta bela passagem, boa como as demais:
ResponderExcluir"Diante do estranhamento dos familiares ao ouvir aquela expressão, Rapadura, inabitual para apelidar alguém, ela saiu com essa explicação bizarra, mas que fazia muito sentido:
— Já repararam que ele tem a cor da rapadura e se derrete com facilidade na boca de cada uma de nós!"
Que 2018 seja de boas realizações, com muita saúde para o amigo e para a família.
Um fote abraço.
Pedro