A filha entrou com uma
sacola na mão e o filho pequeno puxado pela outra. Como sempre, ela estava atrasada
para outras obrigações de sua vida adulta e urgia sentar-se para o café da manhã tomado sempre às pressas na casa dos pais. E precisava correr e não atrasar-se ainda mais para o trabalho que a chamava.
Tranquilo, agasalhado dos
pés à cabeça, o avô, sentado na cadeira de balanço, bebeu, sem muita pressa,
aquele rumor matutino, enquanto a filha, impaciente, se desvencilhava da sacola
no quarto que fora o dela, ainda solteira, porque o menino ficara bem no meio da
sala como uma visita de luz, a mesma que vem todos os dias, sem pedir nada em
troca, pura presença, inocência branca.
Na sala, o peralta se
apoia na cadeira para levantar-se, se equilibra e ensaia um passo em direção ao
avô. Parece dizer que o melhor dele naquele momento está nos pés de pato, no
passo apressado para chegar ao seu destino, sem medo de cair.
Um vento cheio de
fantasia sopra os cabelos brancos do avô no sonho das pedras, no ardor dos
enigmas da vida. Coisa de homem maduro, vivido, que volve seu olhar lentamente
para o menino e o tempo, procurando em suas águas o grão de que foi feito. O
grão de que ambos são feitos. Procurando-se no vazio dos sonhos perdidos e no
peso dos anos para encontrar-se fluvial na barriga da mãe, reverenciando-a com
os pés, enquanto o neto já deu três passos em sua direção.
De lá de dentro do
quarto, da beira da cama, ouve-se o zum-zum-zum de águas mornas que rolam entre
a filha e a avó.
São efêmeros os
zum-zum-zum porque a Santos Titara, berço do seu pai e rua bem longínqua, cresce na
sua memória, quando arrasta a barriga pelo chão de barro porque não consegue
andar, embora já tenha idade para fazê-lo. Muito mais tarde é que saberia que
as lombrigas tinham tomado conta da sua barriga, por isso, sem forças, sem
energia, não andava. A pobreza tinha nome e sobrenome e ele ainda não sabia. O
barro o alimentara muitas vezes por vício e fome, ouvindo a voz de dona Laura,
nunca esquecida, ralhando com ele.
E o netinho, feliz no
abandono provisório, graça e suavidade, nas pernas, salientes mas equilibradas,
se aproxima lentamente, braços abertos, flutuando na ponta dos pés, tirando o
avô da clausura, espiral branca de sua vida inviolável sob os espectros dos
enormes caranguejos, garras abertas e afiadas, ainda enlameados dos manguezais
adjacentes que o faziam derramar-se em copioso choro onde o medo não se
inscrevia com palavras, mas com lágrimas.
Ainda hoje o "vai
pegar", "vai pegar", que não conhecia a preguiça como uma
infestação de lombrigas, deixando a barriga grande e os cambitos de fora, ecoa
pelos túneis dos seus tímpanos, como se ainda tivesse o frescor dos primeiros
anos de vida.
E cintilando o sorriso,
o neto avulta nos seus braços, suavemente, ar no ar, tirando-o do devaneio
imóvel em que se perdia.
José Carlos Sant anna