Bárbara nunca soube
delimitar a fronteira para saber o grau de instabilidade emocional de Tão
Preto, mas o importante é que ela o aceitava com os surtos e as febres, olhando-o sempre de modo
indiferente nas pequenas ou grandes loucuras que ele fazia, quando a crise se instalava. Os
medicamentos atenuavam as oscilações de humor, mas nem sempre o uso era contínuo como
recomendado. E assim, com altos e baixos, ele ia levando a vida de caniço e samburá, como dizia a música, sem querer saber se a maré estava cheia.
Ela sempre se surpreendia
pensando nessas coisas enquanto tomava uma xícara de café na ampla cozinha de sua
casa, achando que não era assim tão preocupante o que ele aprontava, depois
relaxava porque ela também tinha suas idiossincrasias, e não eram poucas. E,
então, deixava que a natureza a seu bel-prazer cumprisse o delicado papel que
lhe cabia na seara de cada dia.
Tão Preto desceu do ônibus
na tarde quente do verão soteropolitano, lembrando-se de que ainda não visitou
as notas musicais esta semana e não sabe se ainda vai fazê-lo porque chovia
canivetes na sua horta.
Mas o que Tão gostaria
mesmo era que chovesse sonhos de valsa, afogando-o, assim ele se lembraria do
quanto eles fazem falta — os chocolates musicais —, nos seus bolsos, mesmo
sabendo que esses impolutos doces derretem rapidamente com o calor do seu
corpo, mas sabe também o quanto aquecem uma vez digeridos.
Bem que poderia ser um
chocolate mais refinado, mas sonhava sempre porque ele era um otimista, e como
gostava de ser um otimista, por isso se viu logo dizendo para si mesmo que o
sonho de valsa bastava. Não importa o tipo de chocolate que estivesse mastigando, mas não poderia esquecer de forma nenhuma que essa
iguaria remonta às civilizações pré-colombianas, e todos trazem o gosto das
amêndoas fermentadas e das torradas de cacau, de sabor inigualável, variedades
de formas, alto valor nutritivo e energético, sem falar das propriedades
antioxidantes que guardam em cada barrinha. Pra que querer mais do que isto!?
Tão Preto sabe que é cedo
para mudar de ideia porque da última vez que procurou seu psiquiatra — embora
ele soubesse, fazia muito tempo, que ele não passava de um vigarista —,
dessa vez Josias, o psiquiatra, lhe pareceu muito sensato na conversa. Didático
na prescrição que fizera, recomendou que Tão visitasse as notas musicais
regularmente.
— Faça-o uma vez por
semana! Depois vá aumentando a dose.
— Hum! Uma vez por semana,
doutor?
— O melhor seria fazê-lo
pelo menos três vezes por semana, como se fosse uma terapia e, como tal, o
ideal seria repeti-la duas ou três vezes por semana — ressalvou Josias.
— Doutor, o senhor acha
mesmo que isso vai me ajudar? E se vai ajudar até quando isso acontece?
— Sim, sim, vai melhorar, Tão! Você vai ver! Faça como se fossem exercícios físicos, seguindo a minha prescrição.
Tão Preto ficou o
observando, enquanto fazia piruetas com o lápis sobre a mesa como se fosse uma
lança, que o atingiria mortalmente, se usada como tal.
Percebendo o jogo de Tão
Preto, Josias afastou a cadeira da mesa para distanciar-se dele e bateu a mão sobre o tampo da mesa, olhando-o fixamente e disse:
— Mens
sano in corpore sano — duas ou três vezes por semana.
Tão Preto mantém a
receita, sem rasuras, guardada em uma pasta de elástico, na cor verde — faz
questão de dizer-me — porque se for imprescindível aviá-la outras vezes, o
balconista da drogaria, por certo, não criará nenhum obstáculo, vendo-a conservada.
— Protegida desta
maneira, a receita não ficará com cara de papel amarelado, nem
amarrotado — sentencia para mim.
Pronto. Aviada, o que ele
faz agora é seguir a recomendação médica, sem falhas, ainda que Tão soubesse
que vigarice é o que não faltava ao seu psiquiatra.
Ocorre, porém, que esta
semana a porca torceu o rabo lá na casa de Tão Preto. É por isso que ainda não
visitou as notas musicais esta semana. De surpresa, aterrissou assim do nada
Chet Baker na sua porta.
Entrou sem tocar a
campainha. Com intimidade, mas sem o trompete. Trazia um pack com doze latas de
cerveja. Olhou-o com a tranquilidade de um músico e disse-lhe:
— É só pra começar.
E ainda basbaque perguntou
Tão Preto a Chet Baker:
— O que o traz você aqui, Chet, à minha choupana assim de surpresa? Chegou quando?
Fingindo não ouvir a
pergunta que Tão fazia, Chet Baker como se estivesse na mesa de sinuca disparou:
— Esse negócio de visitar
as notas musicais a qualquer hora é uma roubada, cara! Saia dessa! Vim salvar
sua pele, não quero vê-lo escalpelado como um homem branco por um índio pele-vermelha!
Falava como se tivesse
ouvido a conversa entre o psiquiatra e o paciente no consultório.
A qualquer hora, dizia
Chet Baker, com sangue nos olhos, o que se deve visitar é uma bela mulher
como aquela loira que está passando ali agora, do outro lado da rua, puxando-o, sem largar o copo, para a janela.
Ela, com um minivestido
azul, purpúreo, faixas amarelas e pretas na cabeça, gingando como se tivesse um bambolê
na cintura, "arregaçava" pela calçada oposta à da sua casa.
Mas
não quero perder o foco, deixem-me falar tão somente de Chet Baker que adora um improviso. Foi assim que ele chegou, como ele gosta de fazê-lo no seu trompete. Depois falo do Tuca,
gente boa quando fica calado.
Quando a mulher de Tão
Preto deu de cara com Chet Baker na sala, perna cruzada, com jeito de que não
sairia tão cedo dali, ele já tinha emborcado três cervejas e mostrava muita
animação.
Ela
fechou a cara porque sabia que aquele lero-lero não tinha hora para acabar e os
dois acabariam esticando o dia e logo o trocariam pela noite. Ela entrou no
quarto e não saiu mais. E quando ele disse que ia ali — fazendo o
sinal com o beiço, para mostrar que iria perto — com Chet Baker, ela reapareceu na sala com a mala
pronta para despachá-lo para onde ele quisesse ir, mas se era para sair que o fosse em definitivo.
E para não ter dúvidas
disse-lhe com o jeitão de bárbara porque sempre fora Bárbara, a deusa
dos raios, ventos e tempestades, a Iansã — também a protetora contra raios,
tempestades e trovões:
— Não precisa voltar — disse-lhe sem meias palavras.
E empurrou a mala de
rodinhas em sua direção, dando-lhe em seguida as costas.
Nunca saberemos se Bárbara
sentiu falta de Tão, mas ele voltou uma semana depois todo estropiado, com cara de santo. E muito cabreiro. Ela o recebeu sem uma palavra. Trazia nas mãos uma faca e um cesto
com centenas de quiabos. Devota de Santa Bárbara, cumpria obrigação todos os anos.
E era véspera do dia dela. Seria também o da redenção de Tão Preto, depois que ela
lhe entregou aquela encomenda: a faca e o cesto. Mãos à obra, era o que tinha a fazer. O caruru tinha que estar pronto para ser servido antes das quatro da tarde do dia seguinte, consagrado a Santa Bárbara.
(José Carlos Sant Anna)