Acabamos por nos acostumar com tudo, mais cedo do que esperamos, dizia
Joaquim para si mesmo como um pragmático pensador, primeiro enrolando um cigarro com as folhas da sua
estufa particular, depois com a lupa do seu tempo de estudante nas mãos, mergulhado nas águas fundas da antiga convivência, como se o mar, que sempre o apetecera, andasse no ritmo da
cadência do mundo por entre as árvores toldadas por estranhezas humanas,
enquanto ele examinava, inata curiosidade, um inseto que tecia no espelho
uma incidental canção inspirada num poema de Drummond. Verdades que se escondem mal finda
o arrepio da tardança e da solidão, sem que Joaquim saiba o motivo das aparências
das coisas porque não consegue desprender-se dos ferrões feitos do nada que
sangram a sua pele. A cadela destrambelhou a vida da casa, tal qual um incêndio
num açude em noite de tempestade. A cantoria das crianças, alegrando a casa, bem poderia ser uma
esperança, uma aurora, que coubesse no céu daquele homem no colo do dia, mas, ao contrário, provoca náuseas, um tremor nas mãos que o engole aos poucos, levando-o para bem
longe de si mesmo. Folha levada pelo vento. E a cadela parece segui-lo. As mais
fundas águas e o bicho a segui-lo no jeito de ser sem jeito, desencanto da
vida. E quanto mais se revela esse jeito cambaio dele ser, se vê mais longe,
sem descobrir as verdades avaras ou que outro nome tenha as intempéries que amanhecem
sob os túneis da escuridão completa. E chama a cadela para a vida que ainda não
viveu, para as estrelas que não se cansaram de riscar o céu. Para as sobras da
infância. Joaquim molda os músculos na barra de ferro que o seu pai instalara no meio do
corredor para este fim. Vapt-vupt, enfia as calças, veste uma camiseta e sai para
abrigar-se na amurada do mar anilado olhando os surfistas se empinarem nas pranchas nas primeiras ondas da
manhã e os cães desamparados que rosnam com a orla negra lambendo suas patas ao expandir e retrair-se no seu fluxo contínuo sobre a areia da praia. E nenhum pormenor da boca da manhã escapa aos olhos de Joaquim que virgulam os matizes azulados do horizonte que não se escrevem com palavras.
(José Carlos Sant Anna)
Gostei bastante de ouvir a Mônica Salmaso que não conhecia.
ResponderExcluirUm abraço e bom Domingo.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
"E nenhum pormenor da boca da manhã escapa aos olhos de Joaquim que virgulam os matizes azulados do horizonte que não se escrevem com palavras." Tão belo! O seu texto é magnífico. Apetece saborear cada palavra, cada imagem…
ResponderExcluirUma boa semana, meu Amigo.
Um beijo.
ResponderExcluirConcordo com Joaquim, tudo é uma questão de tempo, até com as coisas mais sórdidas nos acostumamos, tudo vai se banalizando, ganhando contornos aceitáveis, infelizmente. E pelo que vejo e sinto, pobre Joaquim, 'ferrado' desse jeito, parece-me um tanto complicado. Só vai. Belo conto, professor. Gostei do vídeo, não conhecia.
Beijo, uma boa semana nesse calor dos trópicos!
"Acabamos por nos acostumar com tudo, mais cedo do que esperamos, dizia Joaquim para si mesmo como um pragmático pensador"
José Carlos,
ResponderExcluirA minha sensibilidade no contato com a tua narrativa
que desaba em mim, as lágrimas neste desamparo, em
que a "solidão não consegue desprender-se dos ferrões
feitos do nada que sangram" na pele da realidade...
Todo poeta carrega dentro si, este silêncio que se
movimenta nos olhos com a vontade em assimilar
toda a beleza: "E nenhum por menor da boca da manhã
escapa aos olhos que virgulam os matizes azulados
do horizonte que não se escrevem com palavras."
A escolha musical fica nesta imensidão dos olhos que
captam a beleza da arte, adorei!!
Um privilégio seguir o teu espaço e captar tanta
beleza com este ato da leitura aqui, ainda em
outro momento voltarei para o comentário do
outro post...
Beijos e votos de uma semana feliz e na paz!
"cadela de vida" a do Joaquim a acomodar-se à sua dose de amargas desistências (ou impotências) ...
ResponderExcluire a ganir gemebundas "intempéries que amanhecem sob os túneis da escuridão completa"
excelente naco de prosa, meu caro amigo, a dar testemunho do teu enorme talento como escritor e a provocar, porventura, delicadas e animosas solicitudes perante solidão dorida do teu personagem...
forte abraço, caro José Carlos
Essa parte também chamou-me muita tenção...bem intrigante.
ExcluirAbraços Manuel.
E assim a vida escorre pelas nossas mãos...se não a vivermos plenamente.
ResponderExcluirAdorei o conto e todas as suas entre linhas.
Abraços bem carinhosos a ti querido.
Nice post. 🙂
ResponderExcluirFollowing you, follow back?
www.minniearts.com
Boa noite, José Carlos, um conto excelente, que prendeu-me a atenção do início ao fim. Não sei dizer por que lembrei-me do contista Ricardo Ramos (claro que tu deves conhecer bem o filho de Graciliano Ramos).
ResponderExcluirParabéns pelo seu criativo conto que diz bem do seu talento de contista.
Um bom fim de semana.
Abraço
Pedro
Gosto de passar nas "Dobras do Dia". Hoje "um inseto tecia no espelho uma incidental canção inspirada num poema de Drummond". E Joaquim supera o desencanto da vida com "os matizes azulados do horizonte que não se escrevem com palavras"
ResponderExcluirAssim ... a espaços ... a poesia imiscui-se. É sempre imprevisível.
Beijos.
Um daqueles dias, em que nos sentimos desamparados... e se levam as insatisfações da vida, a desaguarem no mar... e se volta de peito cheio... depois da linha do horizonte, nos acalmar... mostrando que ainda há mais por vir, ver, e viver... do que a vista consegue alcançar...
ResponderExcluirMais um maravilhoso pedaço de escrita... onde cada palavra, revela uma sensação... uma cor... um aroma... ou uma emoção... ou um daqueles dias, mais difíceis de suportar... que dificilmente, conseguimos deixar em palavras...
Beijinho! Continuação de uma excelente e inspiradora semana, José Carlos!...
Ana
"...E chama a cadela para a vida que ainda não viveu, para as estrelas que não se cansaram de riscar o céu..."
ResponderExcluirSempre tão belo.
Tenho perdido muitas 'pérolas' daqui.
Um beijo a Tão Preto e outro para o José Carlos.
De facto, o homem tem a capacidade de adaptar-se
ResponderExcluiràs situações mais estranhas e até, extremas, mas
a diferença está na velocidade de adaptação...
Há quem avalie a inteligência pelo grau de
adaptabilidade...
Não me parece que este Sr Joaquim ficasse com
um QI digno de registo.
Salvava-o a paisagem de mar e surfistas...
Porém, o seu conto ficou excelente.
Dias de contentamento, com tudo a seu contento.
Abraço
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