O dia amanheceu
ensolarado como há muito não se via na velha cidade, caótica, de clima
instável, como um dia disse D. Léa, de forma bem natural na porta da loja de charutos
finos, importados da Bahia, que ela fazia questão de realçar como uma
verdadeira conhecedora dos produtos.
Fumava seu charuto
com a marra de quem, na sua idade, merecia aquele filão de prazer. Sem perder a
fidalguia, a elegância. E sempre gabando-se de fazê-lo bem. A modéstia não era
o seu prato favorito. E, para não fugir à regra, enquanto puxava a fumaça sem
pressa, aproveitava para desandar sem trégua os políticos, indistintamente.
Aquela senhora não tinha papas na língua, conhecia a cidade e os políticos como
poucos conseguiriam fazê-lo, por isso ela falava com rara desenvoltura de
ambos, pouco se importando com os interlocutores à sua volta.
Por outro lado, se
via pelo brilho do sol àquela hora da manhã que seria um dia propício para
alcançar a rua e rolar de bicicleta até as pernas não se aguentarem sobre as
duas rodas. E como as duas coisas em qualquer lugar do mundo combinam, ainda
que tudo se passe numa calçada estreita, sempre coberta pela sombra de espigões
ou mesmo pelo corpo de um morador de rua, como este que se sobrepõe à minha
frente e, ainda de quebra, é guardião de duas cadelas, Duquesa e
Princesa. Coisas de cidade grande!
São animais que não se
afastam do seu protetor um só instante e, ao mesmo tempo, demarcam, orelhas
roxas, fitinha rosa enrolada no pescoço, despojadas em um lençol encardido, o
território deles na buliçosa avenida da cidade grande. E,
assim, na quietude da soberania que exercitam na via movimentada da cidade, os
três pulsam na calçada, quente e ainda nua, àquela hora.
— Sou seu
agora, diz Mathilde com um riso maroto ao olhar a cabeça do dragão na entrada
da casa, pendurado na parede e exibindo certa perplexidade com a sacristia
improvisada.
O dragão parecia
ter levantado a sobrancelha para entender o que estava se passando na sala de
estar da casa, do que se aproveitou Mathilde para dizer-lhe com um ar sedutor:
— Vamos sair, meu
dragão!
— Sair pra
onde? — Ele perguntou.
Aquele dia radioso
era um bom pretexto para Mathilde exercer o seu direito de ir e vir, de fazer
ou deixar de fazer o que quisesse no domingo que, vestido de azul claro e sem
pedir licença, já se banqueteava na cozinha.
— Bolas — ela
disse para o dragão — estou cansada de ficar nesta casa, de esperar
não sei o quê... Você não vai fazer nada por mim? Desça daí porra! Vamos sair!
Mentia. Era só uma
retórica despudorada. Pensou em um drinque, mas era muito cedo para bebericar
alguma coisa. Depois, o que ela queria mesmo era sair do isolamento em que
vivia por livre e espontânea vontade, o marido há muito lhe dera a desejada
carta de alforria. Bem que poderia escolher uma rua inteira nas adjacências da
sua casa para caminhar na certeza de que não seria importunada por ninguém. Ou,
quem sabe?...
Ou, quem sabe,
repetiu para os seus botões, apanhar um ônibus e fugir da solidão. Andar
pelas ruas da cidade na companhia do motorista e de uns poucos passageiros,
solitários como ela, deixando que a mobilidade a levasse para longe dos seus
caprichos e anseios.
O ônibus, o
motorista, os passageiros poderiam ser a gambiarra que lhe estava faltando no
fundo do poço. Isto já seria um grande consolo para o seu martírio, amém!
Mathilde sempre
acordava cedo. Portanto, as ruas, abandonadas, desertas àquela hora, com os
motoristas, imaginava, mais cuidadosos, eram um convite à aventura, à
deambulação terápica, enquanto Joaquim, seu marido, dormia arrotando por baixo
e por cima, ainda com a cara cheia da bebedeira do dia anterior. Não se
levantaria tão cedo, sabia disso. Ela mandaria às favas a missa como sempre
tivera vontade de fazê-lo. Mas tudo isto era apenas uma fuga silenciosa porque
sua intuição dizia que o casal, que animara sua vida nas últimas semanas, não
perderia o domingo ensolarado. Havia duas semanas que os dois não davam o ar de
sua graça no paraíso ao lado.
Nos últimos
tempos, Mathilde passara os dias a rastejar-se pelo chão da casa como um tatu a
procurar o buraco perdido até que um dia ouviu um zumzumzum no apartamento
vizinho e gozou literalmente e, depois, como há muito tempo não o fazia, com a
sensação de liberdade, ao se deixar levar pela azáfama do casal entre as
quatro paredes vizinhas.
Uma vez por semana
o casal enfiava a chave na porta do apartamento contíguo. E sempre que isto
acontecia, era o anúncio de que a libido correria à solta no quarto vizinho e
quem quisesse veria as marcas pelos corpos, antes que o casal voltasse ao
cotidiano de suas vidas.
Quando acontecia
no domingo pela manhã, a missa ficava adiada. E fazia quase duas semanas que o
casal tinha estado no paraíso. Imaginava que seria a hora do casal voltar.
Assim, abandonando a retórica, arrastou-se pela casa sem vontade de sair a
esperar pelo rebuliço nas paredes vizinhas. Logo se viu a estender os
braços e os olhos para as extravagâncias que começavam a rolar atrás da porta
vizinha com a promessa de que levariam o dia inteiro.
Afluentes de um
mesmo rio chegavam sob a luz do sol numa contrarrevolução dos costumes. Estava
na cara, nas mãos, no corpo inteiro que eles já vinham se esfregando dentro do
ônibus, imaginava Mathilde, bisbilhotando pelo buraco que ela abrira na sua
parede para não perder nada dentro do quarto vizinho. Fechava-o
depois de cada visita do casal com uma cortiça preparada para não deixar
vestígios dos dois lados.
Sua pasmaceira
tinha acabado. Ela estava posta à prova a cada gemido, sem poder pegar carona
no trem doce da alegria, que abria o céu ao meio. Mais tarde veria se
encontraria um farol para orientá-la na obscuridade da sua vida, que ficara
dispersa feito a brisa, mas ela não queria ser feliz de outro jeito agora.
Aquele era o buraco da sua alegria, da sua felicidade, por enquanto.
Depressa, Mathilde
passou pela cozinha apagou todas as bocas do fogão e, antes de voltar ao
quarto, abriu a torneira da pia sobre a louça amontoada na cuba para evitar as
moscas. Ali era um dos palcos do seu infortúnio, mas ainda não perdera o tesão,
embora a incomodasse ver o Joaquim deitado em sua cama vendo a vida passar. A
missa não passava de um pretexto para afastar-se. O que ela não queria
mesmo era ver a vida diluir-se, abrindo as caixas em que guardara o passado a
repetir os versos da canção "É doce morrer no mar".
Chegou ao quarto a
tempo de vê-los ainda nas preliminares. Ela já tinha tirado a roupa toda. Sem
tirar os olhos dela, ele tirou os sapatos, as meias, a camisa, as calças. Depois se meteu na cama ao lado dela...
— Escuta — ela
disse — vai transar de cueca?
— Claro que
não!
Ele puxou a cueca
e beijou-a. Ao sentir a boca da mulher na sua, correu a mão pela perna
dela acima e depois começou a desenhar com a língua letreiros indolores nas partes íntimas da sua
companheira, enquanto Mathilde se queimava, sem querer gritar, do outro lado da
parede, enfiando a mão por dentro da calcinha...
O marido acordou
ainda bêbado e deu de cara com a mulher nua, olhar perdido em estrelas que brilhavam tão somente em suas pupilas, toda lambuzada de geleia de morango no chão do
quarto e, antes que, estranhando a cena, ele perguntasse alguma coisa, ela se levantou de um salto,
sorriu e se afastou em direção ao banheiro.