Imagem capturada na internet
Para o seu desgosto, o marido ria pelos cantos da boca. À socapa. Ela o conhecia bem, portanto, sabia que aquele riso bem matreiro estava ali escancarado, à sua frente, o que a deixava ainda mais contrariada. Não era para menos. O garçom
os surpreendera com uma inesperada reação. Ela ficou sem graça, mãos atadas e a língua presa à garganta, logo ela que não é de deixá-la assim sufocada, na goela. E o marido, embora estivesse constrangido e solidário com a situação, não deixava de achar patético aquele caco na cena do jantar. Por isto, ria fechado em si mesmo. Discreto. Ela que o via de outra maneira. Para ele, a cena fora cômica. Como ele me contou depois.
Empertigados, saíram os dois do hotel para jantar; ela, aproveitando o pulsar do momento, disse:
–
Fagundes, que tal irmos novamente à Cantina do Mosquito?
E, enfiando-lhe
a mão por dentro da sua camisa, fez-lhe um carinho discreto no fundo do táxi e, depois, achando que tal atitude a deixava com “tudo dominado”, arrematou:
– Hoje
pedimos um consomê de
frango de entrada e um risoto de frutos do mar, lá
escolhemos a massa. Era tão fino aquele restaurante, não era, benzinho? –
disse-lhe rindo. – Era a "minha cara". Você me disse ontem que gostou, você está lembrado?
Fagundes, autoritário, dominador, fez de conta que a conversa não era com ele. Sorriu rapidamente como se estivesse
no teatro assistindo uma comédia onde o riso teria que ser breve para não se perder a próxima cena do espetáculo, e soprou o Mosquito para bem longe com discrição. Afinal, ele já tinha pedido ao taxista para levá-lo a uma casa portuguesa, com certeza,
para degustar um bacalhau, pois estava até os gorgomilos de restaurantes italianos. E o taxista, obediente, seguira o roteiro do marido e os deixou no local combinado.
Ela
fez uma cara de poucas amigas quando o taxista foi diminuindo a velocidade do seu carro e parou na porta de um restaurante português. Ela ameaçou voltar para o hotel no mesmo táxi, esbravejou, porém o marido, jeitoso, domou a fera momentaneamente. Por fim, contrafeita, ela entrou dizendo-lhe baixinho:
– Isto
é lugar que me tragas... Não vês a diferença para a casa italiana de ontem?
Realmente, o restaurante não tinha a sofisticação da casa italiana, mas era muito aconchegante. O espaço, ela reconheceu lá dentro, era acolhedor. O marido obtivera boas referências. Sentaram-se.
O garçom veio servir-lhes, solícito.
Ele
pediu um caldo verde; ela, sopa de ervilhas, de entrada. Aceitaram o vinho do porto de
aperitivo e as fatias frescas de pão. E pediram um bacalhau a lagareiro como o prato principal.
Enquanto
aguardavam os pratos de entrada, degustavam o vinho e admiravam os detalhes da decoração retrô com galinhos de Barcelos por todos os cantos. Quase perguntaram ao garçom se os proprietários da Casa eram de Barcelos pela abundância de galos decorando o ambiente.
O
garçom trouxe duas tigelas fumegantes e se afastou.
Eles comiam e conversavam. Conversavam é modo de dizer. Ela reclamava baixinho da sopa, dizendo-lhe
que a carne não era de vaca.
Desconfiado,
o garçom os espionava discretamente um pouco afastado, pois a mulher, volta e
meia, mostrava a tigela e dizia para o marido:
– Isso
é carne de porco, Fagundes, eu detesto carne de porco, você sabe, não é?
Mesmo mantendo uma distância da mesa do casal, parecia que o garçom entendia tudo, pois, tanta conversa exibindo a tigela era mal sinal; o garçom, olhos atentos, concentrados na entonação de voz dela, procurava fazer uma leitura labial do que ela dizia, por desconfiar de que havia alguma coisa errada naquele reino, que não era o da Dinamarca, pois estava ali muito próximo de si.
Enquanto
isso, Fagundes, louco por caldo verde, cuidava de raspar sua tigela com uma fatia de pão.
Intrigado,
o garçom não afastava um só instante o olhar da mesa deles, guardando a devida distância, pois não entendia por que, apesar de
tudo, ela sorvia a sopa com tanto prazer.
Quando,
na tigela, sobraram poucos grãos de ervilha, as tiras de carne e um fio tênue do
caldo, ela olhou o garçom disposta a indagar-lhe se era carne de porco. Apenas
isso, nada mais, era o que ela queria saber. E fez-lhe um aceno discreto.
O
garçom, experiente, calejado no trabalho, português sem papas na língua, pressentindo com algum equívoco, diga-se, no que dali viria, se dirigiu à mesa disposto a não engolir nada do que a brasileira tivesse a dizer-lhe, e antes mesmo que ela abrisse a boca, ele se antecipou ao discurso da madame dizendo-lhe:
– Minha
senhora, depois que bebestes o caldo todo é que tu vens reclamar, ora, faz-me o
favor, a senhora não está em sua terra não!
E, sem
titubeios, deu meia volta nos calcanhares, e foi apanhar uma bandeja.
Voltou à mesa e retirou a louça da mesa, sem dar-lhe, outra vez, tempo de dizer-lhe qualquer coisa.
(José
Carlos Sant Anna)