Por quase um nada, o domingo se esvai, é o que digo quando meus
olhos se despedem da maçaneta da porta depois de fechá-la esperando que ninguém
mais faça batucada em suas folhas querendo entrar para contar as últimas novidades. Da última vez, que isto aconteceu na casa de dona Maricota
(por favor, não me digam “que nome estranho!”), depois que ela trancou a porta e conferiu
três vezes, como sempre o fazia, ela se sentou para tomar seu café e, sem querer, entornou-o na
sua camisola de dormir e ficou muito zangada porque o marido instintivamente fez uma
foto do instante e ameaçou colocá-la nas redes, mostrando-a na intimidade. Ela amuou, fez um biquinho
de criança contrariada, mesmo sabendo que o marido jamais divulgaria sua foto pelas redes sociais porque ele sabia, ela não ficaria satisfeita. Neste contratempo, ele encontrou o pretexto para o que
tinha em mente desde cedo sem que ela suspeitasse das suas intenções. Assim, para deixá-la com mais pulga atrás da orelha, fazia parte do jogo de sedução, ele se ajoelhou e beijou os dedos dos seus pés até que ficassem molhados de
saliva. Ele sabia, ela não gostava dessa pirraça. Para ela, era pirraça
porque todas as manhãs quando ele abria os olhos, ela já estava acordada fazia
um bom tempo, então, ele se virava, se encostava e dizia. “Essa poupança me faz
dormir de novo, chegue pra cá, antes, umas bombadas vão lhe fazer bem”. E fazia
movimentos circulares esfregando, meio lá, meio cá, se me entendem, aquele pedaço de carne na sua bunda, e fazia isto às vezes,
lenta e, às vezes, com mais frenesi, e perguntava sempre sorrindo: "me diga, você prefere
assim?" Interrompia aqueles movimentos. Olhava pra ela, sorria. E recomeçava com um vai e vem
igualmente frenético e perguntava “ou assim?”. E dava-lhe bombadas. E tentava beijar-lhe
de boca suja. Ela sorria sem graça, empurrando-o para longe, e dizia-lhe: “Vá
escovar os dentes e volte, que eu deixo”. Assim, começava, só de pirraça, a
sessão matinal do lambe-lambe. Pois, como eu dizia, com muita força de vontade,
ela arrancou os pés das suas mãos, inutilmente porque a salivação foi subindo
pelas pernas. Já não era pirraça, ela admitia, subia uma comichão, ela disse
depois que não estava morta, por quase nada, revelando certa ligeireza, desprendeu
os cabelos e como estava abstêmia, pois fazia um tempo que ela não sabia o que
era aquilo pra valer, se entregou. Sentia que era alguém com a obrigação de
renascer, de respirar de novo a frescura do prazer, sentir a carne e as veias que latejavam. Sentia o cheiro da pólvora muito perto, queimando-lhe. Enquanto um pé da sandália ficava no corredor da casa,
sentia um tremor nas mãos, enquanto se desembaraçava das vestes com sofreguidão como se ela fosse a protagonista dum filme naquela loucura feliz. Depois do lufa-lufa, ele caiu para o lado, prostrado, sinal de que a surra tinha sido boa e dormiu na mesma hora. E ela esquecera o seu adágio "nunca aos domingos", pois, pela
primeira vez na vida, desde a adolescência, sempre detestara os domingos,
sobretudo, depois do almoço, aí começara sua via crucis, quando os irmãos,
ouvintes das emissoras de rádios, atormentavam-na, ao deixar no máximo volume a
transmissão do futebol. Pela primeira vez, depois de anos de casada, Maricota
ficou deitada horas sem querer que o domingo acabasse, mesmo que ambos, o marido e o domingo, estivessem pregados ao seu lado.
(José Carlos Sant Anna)