Envolvido com uma caixa de
fósforos, que guarda um tesouro, deixo o blog em stand by. Agradeço e muito a compreensão de todos. Tão logo o tesouro
esteja salvaguardado e, se outros projetos não tomarem "um jeito de corpo", voltarei para
este convívio que me “faz tão bem”.
Aparentemente, era o que parecia, mas, por puro milagre, não por outra razão, ela estava imune. Assim, a moça acolhe o olhar, regulando as
horas enquanto suas mãos se agigantam cortando os quiabos depois de lavados com água de cheiro. E saudosa, ela prova o tempero do verbo e
explicita que ainda se comove com a nudez que o verbo incita. E das outras coisas em volta, pressente que tudo
não passa de uma ânsia amorosa como se fosse um espectro de luz, pedindo-lhe que se aproximasse para que aprendesse a lição das mãos que se mobilizam a dizer-lhe que há séculos a lua persiste nas dunas do
tempo ante a iminência, mais do que na ausência.
Agosto, parecia muito feliz, sem que soubesse que eu
estava logo ali, na poltrona da sala, a observar pelo vidro o que acontecia do lado de
fora, quando, por instinto, o gafanhoto se afastou da nuvem que sobrevoava o
prédio e pousou na pequena horta da minha jardineira. E ficou quieto perscrutando em volta. Buscava reconhecer aquele admirável mundo novo. Ao que parece, ele não sente
falta da turma, da nuvem, que pairava um pouco acima da minha cabeça. E
apetece-me, por enquanto, vê-lo movendo suas patinhas por entre minhas hortaliças. Sem pudor. Vagarosamente, fareja com suas antenas o cheiro e sente o sabor de cada folha. E a sonoridade da
palavra apetece me apetece, parece vir das nuvens. Deixo-a no céu da boca por
alguns instantes. E depois digo em voz alta "apetece-me", enchendo o ar com suas
vogais e consoantes. Deixo-a dissipar-se no ar. É uma palavra que não quebra espelhos
e levita com a imensidão da lua quando há um rio noturno e os teus joelhos se
dobram à minha pulsão.
Em meio a um tormentoso frio e em engasgada ânsia, ela me diz "és de mim que nasces", imberbe, vens mais
perto, vens, e beija-me, e beija-me, e suplica-me no teu silêncio e no
sorriso que leva brilho aos teus olhos. E toca-me, e beija-me, e toma a minha caneta em
suas mãos, massageando-a delicadamente à beira de extravasar o precioso líquido
enquanto a minha língua se expande pelo teu corpo, onde me perco, onde
me acho, desenhando sílabas que se enroscam vorazes, impelindo-me para dentro
da tua mancha branca quando sangram às margens do teu cântaro outras sílabas e
palavras e suspiros. E transpiro. E saboreio o canto, o ritmo, a
musicalidade no teu corpo, do teu corpo, pelo meu corpo. Trêfegas, volto a desenhá-las na
página em fogo mais brando e antevejo o longo fio costurando a
face ainda oculta do poema que revela seus dentes ao
se fazer e se refazer em minha medula e no desejo que me impele à
salivação no vagar e nos afagos.
Ficaram meus olhos enfumaçados
quando o dono da casa abriu a porta do apartamento e Chico Buarque de Holanda,
de carne e osso, sorridente, depois de “ter atravessado a rua no seu passo
tímido”, entrou e cumprimentou os que estavam na sala de visitas.
Eram cinco professores da área
de arquitetura. Fariam uma homenagem ao cantor, compositor e escritor
que, à luz da lógica, eu não saberia dizer-lhe as razões de tal honraria. Eu
estava lá também entre os convivas. Embora eu não fosse da área de arquitetura,
com os olhos semicerrados, guardava algo raramente provado de tão original e
catatônico que eu não saberia dar-lhe um nome.
Até então eu era uma criatura invisível no olho da noite no meio da sala de jantar dos discretos senhores. Intruso. Anônimo. Substantivo que traduz bem a minha presença no fundo da sala. O que eu fazia? Embrulhava um livro, aleatoriamente, com
dedicatória, escrita do meu próprio punho, dedicatória que tinha brotado da
toalha da mesa como uma receita de pudim sem ovos.
"Eu já sabia", como
diria um fanático torcedor depois do apito final do árbitro da partida de
futebol e a consequente vitória do clube do seu coração. Era como estava consignada a dedicatória para o artista da palavra e da música.
E pasmem! Aquela homenagem era a propósito de um livro sobre arquitetura que ele nunca cogitou porque a arquitetura não passou de uma esquina
aberta em sua vida para a qual ele não voltou, sequer para um chope gelado,
bebido em pé, mesmo que fosse só para refrescar a memória.
Como visto e à luz da lógica,
das borras desse café sairão apenas algumas sombras inexplicáveis, como se a vida fosse um barato de comida caseira. Foi tudo muito rápido, como um sopro, como um
sonho, sem divã para esmiuçá-lo. Talvez por isso Chico não se tenha demorado na
face oculta desta sala.
Não sei se ficaram cigarros
pela metade na sala, se beberam cerveja, se houve a magia de abraços entre os presentes. Eu só sei que Chico, depois de despedir-se dos presentes, saiu “pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair” e,
quase no mesmo rastro, estava de volta à sala. A porta do apartamento
não chegou a se fechar. Aí, ele entrou e foi direto ao meu encontro.
Com um gesto solene me abraçou e depois de algumas palavras ao sabor do vento, o que não é comum
em Chico, sempre muito gentil, foi saindo em definitivo.
Uau! Vejam, o cara voltou só
para falar comigo. Imaginem! Quanta honra! Com um aceno largo, eu o chamei para
dar-lhe o livro de presente, o que eu acabara de embrulhar com um papel
amarfanhado e uma tinta qualquer usada para escrever a dedicatória, no livro, o
que ele nunca escrevera ou imaginara. Na página de abertura da obra, uma incompreensível dedicatória, e agora cabe ao leitor, à luz da arte de fingir,
explicar essa utopia na noite.
O garçom olhou Tão Preto sem entender o que ele
queria saber e deu quatro ou cinco passos adiante até uma mesa de canto do Meia
Légua. Vazio, o bar estava sem aquela energia visceral e os garçons bocejavam
pelo meio do salão.
Tão Preto, que o seguia rindo, se sentou e pediu um
chope bem gelado, como se não tivesse lhe perguntado nadica de nada.
– O senhor perguntou o que doutor?
Tão Preto o olhou sério e disse:
– Eu lhe pedi um chope bem gelado, cheio de ânsia e
vontade.
– Já comandei o pedido. Quer mais alguma
coisa, doutor? – Perguntou-lhe gentil.
– Não, obrigado. Um dedo de colarinho no chope, por
favor!
– Mas o senhor queria saber alguma coisa
quando entrou? Ou me enganei?
Tão Preto deu de ombros à insinuação do garçom, mas
ele insistiu:
– Me perguntou se eu tinha notícias da senhora
Maricotinha, não foi?
– E o senhor conhece D. Maricota das Neves
Rocha? – Perguntou-lhe com um ar sério, como se dissesse quem lhe deu
tanta intimidade.
Confuso, o garçom respondeu:
– Não, não conheço essa senhora! Foi o senhor
que falou esse nome quando entrou.
– Fala sério, cara! Perguntei-lhe o quê?
O garçom se atrapalhou nas palavras para
responder-lhe. E por não saber o que dizer, se afastou para pegar o chope no
balcão, pensando “porra, lidamos com tantas esquisitices na vida. Aqui, no Meia
Légua, não é diferente. Às vezes, elas parecem maiores. É o nome do bar.
Pudera! Meia Légua”. E não se grilou com aquilo. “Toca a boiada, vaqueiro! O
doutor tem cara de boa gente”, disse cheio de garra! Seus colegas no balcão da
choperia o olharam desconfiados! Ele riu. E falou ainda alto para que eles o
ouvissem:
– A noite promete!
Maricotinha vai ficar furiosa ao saber que Tão
Preto não segurou a língua e saiu pelo mundo afora e redes sociais – como viver
sem elas hoje? – como se fosse o pôster do amigo Che Guevara, perguntando se
alguém a tinha visto por aí, se alguém tinha notícias do paradeiro da sua
companheira, como ele fazia agora com o garçom. Ou da sua fiel escudeira, como
ele preferia chamá-la.
O garçom voltou com a tulipa de chope.
Tão Preto estava com a língua coçando e estava
conta não conta a sua história, ali, no Meia Légua, que guardava outras
histórias nas paredes e mobiliário da casa.
– Senta aí que vou lhe contar uma história.
O garçom reagiu.
– Não posso sentar não doutor. Meu trabalho é
em pé e não posso ficar de conversinha mole com cliente não, senão eu danço. As
crianças estão em casa me esperando com o leite – respondeu meio na bronca o
garçom.
Tão Preto riu da resposta torta e embicou a tulipa,
deixando-a pela metade.
– Humm! O senhor estava seco? – disse conciliador o
garçom.
– É a falta de Maricotinha – disse-lhe com um ar
bem-humorado, observando sua reação ao ouvir pela segunda vez o nome de
Maricotinha.
O garçom não se afastou. Ficou esperando o que
estava por vir porque garçom é igual a barbeiro, gosta duma
resenha.
– Como é mesmo o seu nome?
– Daniel. Pode me chamar pelo meu nome,
doutor.
– Pois, Daniel, quando menos se espera,
furtivo, um mote arranha a porta – e Maricotinha some no mundo com o gostinho
de torta na boca e os dentes brancos em excesso à mostra a quantos queiram
admirar o seu riso sedutor e a desafiar a natureza dos galanteadores de plantão
e a sua resistência, (no caso a dela, que fique claro). Certa vez, numa dessas fugas, brejeira, ela me disse:
“Eu gosto mesmo é da solidão a sós e não a dois. Pode relaxar, meu bem! Sua
testa estará sempre despojada de galhos. Eu sei que ela não é floresta”. E riu
gostosamente.
Daniel foi pegar outro chope. Trouxe a tulipa na
bandeja, colocou-a na mesa e se encostou na parede, curioso.
– Maricotinha, nunca passou mais de uma semana
longe da nossa alcova, ela é meu ioiô, vai e volta. Mas desta vez, ela já tem
quinze dias ausente das correntezas do nosso rio.
– Quinze dias? Não errou nas contas, doutor?
Tão Preto não deu bola para a observação do
garçom e continuou:
– Quando ela sumiu era uma manhã mais clara
que qualquer outra manhã da minha vida. Depois de passarmos a noite em festa,
rio abaixo, rio acima, como gostamos de fazer quando estamos juntos, em posição
fetal, ela me pediu para aconchegar-me ao seu corpo para ela dormir mais
depressa. Ao acordar, ela me encontrou de pé preparando o café da manhã. Ela
chegou de tênis e malha para o jogging. Ela não falava que ia correr na orla.
Ela caprichava na pronúncia. E dizia: “Se moderniza, cara! Diga jogging, é mais
chique”, e ria do seu humor em alta como se estivesse aplicando na Bolsa de
Valores.
No meio da segunda tulipa de chope, o telefone
trincou. Tão Preto olhou o bicho e lá estava a mensagem: “Tá aonde, meu bem? Já
tenho habeas corpus. Meu amor é igual ao amor de
malandro, ele vai e volta. Estou aquecendo a água do rio à tua espera, beijo!”
Revirado ao avesso com o
combustível dialético da mulher, pelo sabor original que ela tem,
efêmero e transgressor, Tão Preto já sentia o beijo de Maricotinha pelo seu
corpo inteiro e disse para o seu duplo: "Dane-se o garçom! O resto da história, ele
poderá ouvi-la qualquer outro dia. Mesmo porque agora o final poderá ser
outro", e correu para os braços de Maricotinha.
Era
uma manhã cinzenta nos Alagados. Bem cinzenta. E ficaria mais cinzenta, se
Tonho, o soldado do fogo, porque bombeiro de profissão, diante dos fatos, ao
entrar em casa, tivesse perdido de outro modo a cabeça.
O
menino tinha acabado de fazer os deveres da escola e se preparava para carregar
água para abastecer a casa, quando ouviu um burburinho do lado de fora, além
das quatro paredes do barraco onde morava. Não pensou duas vezes. Depressa,
como um bólido, ele pegou a toalha para fazer a rodilha, a lata grande, de
flandres, para tomar, pelas pontes de madeira, o rumo do chafariz e trazer a
novidade para casa.
Num
piscar de olhos, ele estava pronto para cumprir outra das suas obrigações. A
primeira era estudar; a segunda, ajudar nas tarefas da casa com seus irmãos,
embora lhe coubesse sempre um quinhão maior nas tarefas.
O
menino gritou da porta da rua:
— Mãe,
vou pegar a água no chafariz.
E
não esperou a resposta da sua mãe. A máquina de costura rasgava o silêncio do
barraco.
Com
pequeno atraso, ouviu já longe a resposta da mãe:
— Não
fique na rua. Chafariz e casa!
Ele
não chegou imediatamente ao chafariz, pois estancou no meio do caminho ao ver
um homem na superfície da água que, para sorte dele, era a maré cheia.
Como
aquele homem teria pulado pela janela, se na maré baixa a água refluía
completamente deixando os mourões dos barracos, cobertos de ostras, visíveis,
nus da água?
O
homem nadava e mergulhava. E, ao emergir, olhava para trás para saber se havia
alguém o perseguindo por cima das pontes. O menino mirou bem o homem e o
reconheceu. E o homem, vendo-o, fez um sinal com o dedo na boca com uma mão e,
em seguida, um gesto para afastar-se, ir-se embora, enquanto se segurava em um
dos mourões do barraco mais próximo com a outra. O menino viu medo escrito no
rosto do homem. Parecia que ele tinha visto uma alma penada em plena luz do
dia. Assustado, o menino se afastou como ele pediu.
O
homem era Ladi, como todos o chamavam. Um homem meio fino para os padrões da
invasão. Tinha vindo do Rio de Janeiro e vivia se exibindo nas redondezas,
metido a galã. O menino sabia quem era ele. Conhecia as irmãs e as sobrinhas
dele. O menino, que era muito esperto, já olhava com interesse as três
sobrinhas, na adolescência, ao vê-las desfilar pelas pontes quando ele se babava ou se refugiava pelos cantos.
O
homem que aquele homem achava que o perseguia por cima das pontes estava
ocupado em surrar a mulher com um facão. E o menino, mesmo assustado, a
curiosidade se sobrepondo, correu sobre as pontes para pegar a água no chafariz
em terra firme.
Ele
queria saber das notícias porque o homem que surrava a mulher era seu tio, o
soldado do fogo, como o chamavam. Quase um codinome. Mas seu nome era Tonho. E o da
mulher Rute. Eram chamados de tio e tia. Não era um parentesco em primeiro
grau.
Os
laços familiares da sua mãe eram confusos para ele. Eram tantos tios e primos
que, mais tarde, o menino acabou namorando uma delas, mas não ultrapassou os
limites do possível para a época. O menino tinha juízo. Não queria para si uma
família desestruturada. E seguia conselho da mãe ao pé da letra: “não arranje sarna para se
coçar, menino”, era o que ela lhe dizia a toda hora.
No
chafariz, já sabiam o que tinha ocorrido na casa do tio dele. Como a notícia
chegara ali tão depressa, ele não sabia dizer ou explicar. O que sabia e não
disse, é que, por pouco, ele não assistiu a cena.
Ladi,
de cueca, pulando a janela do quarto e caindo ao mar para livrar-se de tio
Tonho. O bombeiro chegara na manhã cinzenta pronto para apagar o fogo da sua
mulher. Ele já sabia que ela vadiava na sua ausência com o tal do Ladi, como
ele dissera depois no seio da família para justificar a surra de facão na
mulher. O tio do menino queria era tê-los apanhado na cama. Se tal ocorresse,
aí sim, como sabê-lo?, uma tragédia teria ocorrido.
E
o Ladi se escafedera ao perceber o barulho na porta da frente. Dizia-se depois
que ele tinha pegado um ônibus de volta para o Rio de Janeiro, à
noite, depois de passar o dia inteiro escondido no bairro do Jardim Cruzeiro,
na casa de um irmão. Era o medo de que sobrassem lanhas do facão para
ele.
O
menino nunca mais soube do tio Tonho, nem da tia Rute. Dizem que eles nunca se separaram, mas conheceram quase todos os bairros da cidade porque eles mudavam de casa com frequência.
No
meio da sala, entre os livros da sua biblioteca, ela lhe pediu que fechasse a porta. Afobado, ele atendeu o pedido. Segura de que estavam a sós, ela, antes de tomar a iniciativa de tirar a roupa, lhe disse:
—
O cadeado está meio aberto.
Ele
lhe perguntou:
—
Meio aberto? Como? Não há meio termo nesses casos — para saber se havia dubiedade na afirmativa que ela fazia.
Ela
deixou escapar um riso discreto e meio tímido — ele quase afirmou que, no caso do tímido, havia o meio termo —, e lhe disse:
— O cara ainda não tinha pegado o jeito de abrir cadeado. Era a primeira vez dele. A minha seria a única — por enquanto. Tô esperando por você. E não era um cadeado com
segredo. Nunca houve literalmente cadeado com segredo nesses casos. Complacente, às vezes,
sim, — deixando escapar outra vez o riso tímido. — Depois ele me tirou da caatinga, do meio do mato e me trouxe para a
cidade grande, para que eu me cuidasse. Me cuidei e sou-lhe muito grata. Me tornei uma artista.
Ao
começar a tirar a roupa, ela teve um súbito lampejo e, interrompendo o seu gesto, se demorou
olhando no fundo dos seus olhos, e lhe disse:
—
Por que você demorou tanto a chegar para mim? Eu estava ficando cansada de esperar por
você. Mas eu sabia que você viria. Agora, vem, vem, deixe-me amá-lo grudada às
manchas daquela tela em branco — disse-lhe apontando a tela na parede da
sua sala.
E, ao virar-se para olhar a tela, escorregadia como um sabonete, movediça, ela resvala. Ele alisa a sua barba por fazer ao ver seu objeto de desejo esvair-se pela janela como um rolinho de fumaça.
É coisa demais gritando ao mesmo tempo a descoser a impressão que não arreda o pé da pandemia.
Aquele gato em escorpião, olhos enfumaçados, sem mãe, permanece ao deus-dará na esquina.
Aquela sombra sob a marquise no olho da noite é um soco no estômago.
Esquecida, a inércia das longas viagens, sem malas, sem agasalho e sem a comida caseira deixa de ser um improviso que desconheceu os ensaios.
Os santos óleos da dúvida para entender as mãos vazias, os tumultos flagrantes deslizando no ar já não preocupam o olho mágico da porta.
O retrato da vovó – me desculpe, Lis, queria ao menos lhe explicar, mas não há tempo para fazê-lo nesta rede complexa de coincidências e agoras – se desfolhando, enquanto ela reclama do seu confinamento no retângulo da moldura.
As palavras que se negam no meio da noite turva do casal sem filhos.
O grito pálido no silêncio em um lugar cheio de excesso em que o sono é irmão da morte.
O ensaio meticulosamente planejado para um "fora Bolsonaro" achando que as coisas podem dar certo, como se fôssemos os chilenos que elegem para sua assembleia constituinte uma maioria feminina.
Ah, que inveja desse povo que não tem a consciência nos pés, na bola, no carnaval e em outras coisinhas mais!
Maricotinha, onde andarás?
Me desculpe, estou descobrindo que sinto falta da tua pele macia, do teu perfume, minha fruta madura.
Não está na hora de você voltar ao nosso confinamento e deleites, rio abaixo, rio acima?
poderia ser chamado loucura quando escrevo algo na vida provisória dos disfarces, deste modo eu não acharia surpreendente coser palavras ao teu corpo como quem, arisco, o habita, coroado de renúncias, enquanto arranjos indecisos chovendo cântaros de desejos desgarram-se das minhas mãos sob um vento leve que modela seu rosto.
Coisas
estranhas só acontecem comigo e elas têm um rosto, o que pode parecer ainda
mais estranho é que este rosto está sempre com um ar exultante a me seduzir, a pegar-me pelas mãos e a levar-me a passear por avenidas e parques.
Daí porque é mentira dos que andam a dizer por aí que as coisas estranhas
ferem. Enganam-se. Os espinhos, sim. E sangram.
Na
casa de minha avó tinha um espelho grande na sala. Foi lá que eu descobri
pela primeira vez que as coisas estranhas não saiam da minha cabeça. Sim, eu já
me entendia como gente, é preciso que você saiba, meu caro leitor, mas não contei nada sobre este buraco negro na camada de ozônio que eu tinha descoberto ao
caso a qualquer pessoa. Você é o primeiro a sabê-lo.
Na
dúvida, o que poderiam pensar da minha bravura ou da minha covardia, se eu
contasse esta presunçosa bravata? Não, daqui já se ouve um farfalhar estranho, e ninguém é de ferro. O melhor é prevenir do que ouvir o realejo chamar ou se abrir a boca para se fechar os ouvidos.
Bem,
é preciso dizer-lhe que não era a mim que o espelho refletia, e sim as coisas
estranhas que não saíam da minha cabeça.
Nunca via o meu rosto refletido no espelho.
Sempre via muitas coisas estranhas ao mesmo tempo. Uma dessas coisas estranhas marcou para sempre a minha vida, embora eu não tivesse fugido para bem longe ao vê-la tão fagueira diante de mim.
Era um
homem em decomposição que ainda gargalhava sem fazer barulho, creiam. Minto. Ele
franzia a testa e piscava o olho. Minto outra vez. Ele fazia as duas coisas ao mesmo tempo. Assobiava e chupava cana. Ainda hoje não sei se ele piscava aquele olho
azul para mim, ou se era um sestro, uma mania, que o processo de decomposição
ainda não subtraíra da sua vida.
Sou
um para-raios de coisas estranhas. Somente ontem, ao ouvir a levada do rock na hora do reggae, eu descobri que esse bicho que não sai da minha
cabeça não apareceu pela primeira vez no espelho da casa da minha avó.
Meu
erro tem sido dar tanto peso a essa carga abjeta que me acompanha pela vida afora como se fosse um amuleto.