Embora
não fosse deixar rastros de pólvora atrás de si, a cadela chamar-se-ia Fuligem, assim quis a
"mãe" antes de conhecê-la. Dir-se-ia deste modo que era uma cruz o que a
cadelinha carregaria para sempre, na delicadeza de pelo, finesse de porte e elegância do andar; em outras palavras, uma verdadeira dama, e o que a sua dona sentia desde já não era dor, era a tensão do
mundo sobre os seus ombros com batismo tão impróprio.
Batizou-a
antes de recebê-la de algum lugar distante embalada em caixa de papelão com fitinha de
presente. Arrependeu-se na hora do batismo antecipado. Mas você bem sabe como é difícil trocar o nome
depois do batismo, não há tabelião que o faça sem burocracia. E o telefone não
parava de chamar perguntando-lhe se Fuligem já tinha chegado. Mãe, irmãos,
primos, sobrinhos, colegas de trabalho e amigos sabiam que Fuligem, com poucos dias de nascida, estava chegando com dia e hora marcados.
E a "mãe" respondia a todos com a mesma solicitude dizendo-lhes que não, que estava aguardando tão ansiosa quanto eles,
enquanto andava com o telefone sem fio colado ao ouvido pelo meio da
casa.
Já
sentia o sorriso sarcástico de Teca, sua irmã, como sempre irreverente, gozadora, a mão
direita a segurar o cigarro a dizer-lhe:
–
Onde já se viu batizar um cão antes de conhecê-lo, mulher? É pela cara que a
gente batiza, dá o nome. Cachorro não é gente, não, que mal foi concebido a
gente bota trezentos nomes na mesa para escolher um.
E ela sabia. Teca a chamaria de Fuligem só de pirraça, sempre com o sorriso de escárnio, ainda
que a "mãe" depois desse sufoco criasse coragem para trocar-lhe o nome.
E agora, mais do que nunca, o corpo pesado, parecia que a "mãe" tinha voltado da guerra, e estava tão desesperada com a escolha do nome que, andando pela casa sem rumo, esbarrou num móvel e derrubou o primeiro cristal no meio da sala, depois outro e mais outro, e tímidas gotículas de sangue brotaram dos seus pés descalços, depois do seu útero como se ela tivesse parido aquela cadelinha tão fofa ainda recolhida à caixa de papelão, rosnando baixinho, sem forças para dizer que queria a liberdade, o ir e vir pela nova casa, pouco se importando com o seu nome de batismo. O que ela queria era respirar o ar livre, correr e brincar. A viagem fora longa!
(José Carlos Sant Anna)