Ficaram meus olhos enfumaçados
quando o dono da casa abriu a porta do apartamento e Chico Buarque de Holanda,
de carne e osso, sorridente, depois de “ter atravessado a rua no seu passo
tímido”, entrou e cumprimentou os que estavam na sala de visitas.
Eram cinco professores da área
de arquitetura. Fariam uma homenagem ao cantor, compositor e escritor
que, à luz da lógica, eu não saberia dizer-lhe as razões de tal honraria. Eu
estava lá também entre os convivas. Embora eu não fosse da área de arquitetura,
com os olhos semicerrados, guardava algo raramente provado de tão original e
catatônico que eu não saberia dar-lhe um nome.
Até então eu era uma criatura invisível no olho da noite no meio da sala de jantar dos discretos senhores. Intruso. Anônimo. Substantivo que traduz bem a minha presença no fundo da sala. O que eu fazia? Embrulhava um livro, aleatoriamente, com
dedicatória, escrita do meu próprio punho, dedicatória que tinha brotado da
toalha da mesa como uma receita de pudim sem ovos.
"Eu já sabia", como
diria um fanático torcedor depois do apito final do árbitro da partida de
futebol e a consequente vitória do clube do seu coração. Era como estava consignada a dedicatória para o artista da palavra e da música.
E pasmem! Aquela homenagem era a propósito de um livro sobre arquitetura que ele nunca cogitou porque a arquitetura não passou de uma esquina
aberta em sua vida para a qual ele não voltou, sequer para um chope gelado,
bebido em pé, mesmo que fosse só para refrescar a memória.
Como visto e à luz da lógica,
das borras desse café sairão apenas algumas sombras inexplicáveis, como se a vida fosse um barato de comida caseira. Foi tudo muito rápido, como um sopro, como um
sonho, sem divã para esmiuçá-lo. Talvez por isso Chico não se tenha demorado na
face oculta desta sala.
Não sei se ficaram cigarros
pela metade na sala, se beberam cerveja, se houve a magia de abraços entre os presentes. Eu só sei que Chico, depois de despedir-se dos presentes, saiu “pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair” e,
quase no mesmo rastro, estava de volta à sala. A porta do apartamento
não chegou a se fechar. Aí, ele entrou e foi direto ao meu encontro.
Com um gesto solene me abraçou e depois de algumas palavras ao sabor do vento, o que não é comum em Chico, sempre muito gentil, foi saindo em definitivo.
Uau! Vejam, o cara voltou só para falar comigo. Imaginem! Quanta honra! Com um aceno largo, eu o chamei para dar-lhe o livro de presente, o que eu acabara de embrulhar com um papel amarfanhado e uma tinta qualquer usada para escrever a dedicatória, no livro, o que ele nunca escrevera ou imaginara. Na página de abertura da obra, uma incompreensível dedicatória, e agora cabe ao leitor, à luz da arte de fingir, explicar essa utopia na noite.
José Carlos Sant
Anna.